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Guerra das maquininhas não é o que parece e defende oligopólio de bancos

Mauricio Gutemberg*

Especial para o UOL

06/05/2019 14h39Atualizada em 06/05/2019 16h51

De um lado, os grandes bancos detêm o oligopólio na emissão de cartões de crédito; do outro também têm o oligopólio de credenciadoras, que conectam os pagamentos aos comerciantes e são remunerados pela MDR (Merchant Discount Rate), taxa de desconto que varia de 2% a 4% de todos os pagamentos recebidos de cartão de crédito. Os pagamentos são (ou eram) feitos em 30 dias, e, caso os comerciantes quisessem antecipá-los, tinham que pagar outra taxa de desconto para o banco, que acabava por bloquear toda a carteira de boletos de cartão de crédito do comerciante.

A finalidade da verticalização nas duas pontas, além da alta lucratividade, é manter o oligopólio dos grandes bancos sobre uma fonte de mais de R$ 170 bilhões de recursos que ficam parados na conta corrente dos clientes à remuneração de 0%. E que ajudam a financiar o cheque especial e o cartão de crédito rotativo, gerando uma margem de juros de mais de R$ 9,4 bilhões para os bancos (mais de 85% desse lucro bruto está nas mãos dos quatro maiores bancos do Brasil).

As três credenciadoras (Cielo, Rede e Getnet) ligadas aos quatro maiores bancos comerciais do país (Itaú, Bradesco, Banco do Brasil e Santander) perderam quase 20% de market share nos últimos três anos graças ao surgimento de fintechs, que desenvolveram estratégias agressivas para acessar aqueles clientes negligenciados pelos grandes bancos (o pequeno empresário e profissionais liberais).

As duas maiores fintechs do setor (Stone e Pagseguro) ganharam musculatura, capitalizaram-se ao abrir o capital nas Bolsas de Valores dos EUA. Compraram licenças bancárias desativadas e estão em processo de consumar um ataque sobre a sacrossanta galinha dos ovos de ouro dos grandes bancos: a conta corrente (depósito à vista sem nenhuma remuneração).

Se até aqui as grandes credenciadoras aceitaram com apenas alguns resmungos o ataque das fintechs, agora resolveram reagir com todo o poder de seus respectivos grupos econômicos (afinal, os resultados das credenciadoras de cartão de crédito estão consolidados nos balanços dos grandes bancos) porque não admitem perder market share no seu principal e mais lucrativo oligopólio: os depósitos à vista parados na conta dos correntistas à remuneração zero.

Ter a conta corrente garante a fidelização para venda cruzada dos demais produtos bancários. Apesar de muitas histórias da carochinha contadas pela Febraban, é essa montanha de mais de R$ 170 bilhões (valor já líquido do depósito compulsório de 21% retido sem remuneração no Banco Central) e a praticidade de venda cruzada de produtos como cheque especial (que os bancos insistem em dizer que não é crédito) e rotativo do cartão de crédito que garantem margens de mais de R$ 9 bilhões por mês aos grandes bancos.

É a razão para resiliência do ROE (retorno sobre capital) médio acima de 20 dos quatro grandes bancos comerciais brasileiros nos últimos 25 anos. Os pequenos e médios bancos não têm conta corrente, e por isso seus resultados são muito mais voláteis, sujeitos às intempéries da economia brasileira.

O pretenso "dumping" da Rede (credenciadora do Itaú), ao decretar pagamento em dois dias, ao invés de 30, a todos os seus clientes com conta corrente no Itaú, é uma tentativa de evitar a fuga desses para os bancos dos novos concorrentes depois da regulamentação do Banco Central que criou a clearing para desconto de boletos de cartões crédito: agora os bancos não poderão bloquear toda a carteira do cliente, mas apenas o valor efetivamente a ser descontado para receber antecipadamente, o que permitiria concorrência dos bancos das fintechs.

Na verdade, por trás da pretensa guerra das maquininhas de cartão de crédito, está o oligopólio dos grandes bancos brasileiros sobre a conta corrente, que proporcionou um ROE acima de 20 nos últimos 25 anos, independentemente de períodos de recessão ou crescimento econômico. Nenhum outro banco em qualquer parte do mundo teve uma performance tão boa e consistente.

Os grandes bancos fingiram aceitar a concorrência das fintechs em relação às credenciadoras, mas não aceitam que eles comecem a capturar sua galinha dos ovos de ouro: os depósitos à vista (dinheiro parado na conta corrente). Eles reduziram apenas marginalmente a MDR, fonte de receita das credenciadoras. O que eles querem é que, caso as fintechs abram seus bancos, tenham que custeá-los corroendo a margem da sua atividade original. Por isso que as ações das credenciadoras cotadas em Bolsa aqui e nos EUA tiveram quedas de 7% a 23% em 18 de abril.

Do ponto de vista do cartão de crédito pagar em D2 sem custo é um avanço e está correto. Ocorre em todo lugar do mundo. Na verdade, a questão é dificultar a abertura de bancos que começarão a capturar parte dos depósitos à vista. A estratégia do Itaú foi abrir mão de um ganho extra (taxa de desconto indevida) para dificultar a concorrência bancária.

Não vejo nenhuma arbitrariedade, apenas acabou com o "free lunch" para as credenciadoras abrirem banco, que vão ter que sacrificar parte da sua lucratividade atual para somente depois ter acesso a uma fonte de recursos a custo zero (conta corrente bancária de seus clientes de cartão de crédito).

O Itaú não falou nada em reduzir a MDR cobrada dos comerciantes em todos os pagamentos recebidos com cartão. O Santander reduziu, mas não antecipou para D2 o pagamento de boletos. Resumo da ópera: está havendo já há uns três anos uma concorrência salutar nas credenciadoras, reduzindo os custos dos comerciantes. Agora acabou a gordura, e a briga foi para manter o oligopólio no sistema bancário. Não será mais um passeio no parque para as fintechs!

* Mauricio Gutemberg é mestre em economia pela USP (Universidade de São Paulo)