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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Riscos, regulação financeira e a falácia do espantalho

Vinicius Carrasco

09/06/2021 10h40

Em seu clássico livro-texto "Microeconomics of Banking", X. Freixas e J.C Rochet definem banco como "uma instituição cujas operações consistem em conceder empréstimos e receber depósitos do público". Em outras palavras, bancos usam parte relevante de seu passivo - os depósitos - para prover serviços de liquidez (isto é, em condições normais, podemos sacar, a qualquer tempo, nossos depósitos à vista ao valor de face) e, simultaneamente, conceder empréstimos de longo prazo a consumidores e empresas. No jargão dos economistas, bancos fazem transformação de maturidade.

Como isso é possível? Como nem todos os depositantes precisarão ao mesmo tempo dos recursos que deixam nos bancos, pode-se deixar disponível a eles uma fração dos depósitos e se emprestar o restante a empresas ou consumidores.

A atividade de transformação de maturidade traz um risco evidente: independente da qualidade dos empréstimos feitos, se todos os depositantes de um banco decidirem sacar seus recursos ao mesmo tempo, não será possível honrar todos os compromissos.

De fato, como os empréstimos bancários são de longo prazo e ilíquidos, transformá-los em recursos correntes (liquidando os ativos ou os vendendo para outra instituição) requererá desconto relevante, o que fará com que os recursos obtidos fiquem aquém dos saques demandados.

Como consequência, instituições que transformam maturidade estão sujeitas a corridas. Pior: por meio de contágio, dúvidas com respeito à saúde de uma instituição pode desencadear corridas contra outras. É isso que motiva sua regulação prudencial.

Da mesma forma, é por essa razão que bancos centrais desempenham o papel de provedor de liquidez de última instância a bancos (exemplo recente: no início da pandemia, para garantir a liquidez dos bancos, o CMN criou a Linha Especial de Liquidez, que já desembolsou mais de R$ 100 bilhões).

Pela mesma razão, em casos extremos, recursos do Tesouro são usados para se evitar crise sistêmica (bancos americanos foram resgatados pelo Tesouro na crise de 2008; por aqui, o projeto de resoluções das instituições financeiras prevê uso de recursos do Tesouro em caso de dificuldades) ou admite-se tolerância quanto a fusões que podem gerar implicações anticompetitivas. Esses são exemplos de subsídios de fato a atuação de bancos.

Esses subsídios, a priori justificáveis pela possibilidade de corridas, podem gerar problemas de incentivos e ter consequências perversas: antecipando a possibilidade de resgate — de fato, uma opção de venda ("put") contra o Tesouro —, acesso a linhas de liquidez junto à autoridade monetária, ou tolerância com fusões, os bancos poderão tomar risco em excesso, riscos correlacionados com os riscos de outras instituições (se todo o sistema estiver com problemas, o resgate é mais provável), além de tornarem-se grandes ("too big to fail"). Por isso, as regras de Basileia III, que determinam requerimentos de capital e de liquidez mais estritos, foram criadas após a crise de 2008 para mitigar esses problemas de incentivo, reduzir risco sistêmico e, com isso, evitar novas crises.

Corta para discussão recente no Brasil. Coluna de Claudia Safatle no jornal "Valor Econômico" em 8 de abril relata estar "em curso nos bancos uma discussão que vai esquentar nos próximos meses em relação à assimetria regulatória". Há poucos dias, controladores e executivos de bancos tentaram acender o fogão, mencionando suposto "desequilíbrio de regras" (sic). Há o que cozer?

Atenho-me, pela restrição de espaço e por fazer parte de uma delas, a um tipo de empresa de tecnologia que presta serviços de pagamento e opera por meio de três figuras:

i) credenciador ("maquininha", cuja definição é dada pela Resolução 80 do BC)

ii) Instituição de Pagamento Emissora de Moeda Eletrônica (provedora de serviços de conta de pagamento)

iii) Sociedade de Crédito Direto.

A resposta é clara: não há nenhuma forma de assimetria; o que há são atividades que, de maneira alguma, ensejam riscos similares aos de um banco.

Vejamos:

i) pela Lei 14031 de 2020, no bojo de uma transação de cartão, o credenciador só pode utilizar os recursos de operação envolvendo seu direito a receber contra bancos emissores para pagar obrigações junto a varejista; ou seja, o credenciador não pode se alavancar com seus direitos creditórios, que têm, por lei, destinação específica (pagar obrigações junto a varejistas).

ii) também por lei e regulação, a atividade de provisão de conta de pagamento requer que os recursos nessas contas estejam apartados e alocados em títulos públicos, não podendo ser utilizados de nenhuma outra forma; em particular, não podem ser usados para empréstimos (economistas chamam essa atividade de provisão de contas com a restrição de que os recursos estejam 100% disponíveis para seu detentor de "narrow banking").

iii) Sociedades de Crédito Direto (SCD) só podem financiar seus empréstimos por meio de recursos próprios; quaisquer perdas são absorvidas pelos acionistas da SCD.

Pelas restrições a elas impostas por legislação e regulação, nenhuma dessas atividades traz risco de corrida ou de contágio a outras instituições de pagamento ou financeiras. Mais importante: por estarem completamente insuladas umas das outras, o risco combinado dessas atividades num mesmo grupo é exatamente igual à soma dos riscos de três instituições que fizessem cada uma delas individualmente; ou seja, os riscos não se retroalimentam (ao contrário do que ocorre com bancos que captam depósitos e emprestam).

Uma regulação baseada nas atividades exercidas pelos agentes deve reconhecer isso e tratar serviços de pagamento ou crédito concedido inteiramente por capital próprio ("equity") de maneira distinta de instituição que transforma maturidade; é isto que a regulação no Brasil faz. De fato, a criação dos atores descritos em i), ii) e iii) veio exatamente para que se tratasse atividades de pagamentos com requerimentos regulatórios proporcionais a seus riscos. Foi esse marco regulatório que permitiu entrada e competição.

Os bancos podem sempre utilizar somente recursos dos acionistas para fazer empréstimos e colocar a totalidade dos recursos de seus depositantes em títulos públicos. Por preferência revelada, se não o fazem, estão melhor. Também podem sempre fazer uso de um espantalho para tentar aumentar artificialmente custos de competidores (sujeitos, pela sua atividade, a regulação bastante mais estrita), mas não vão espantá-los. A disputa será na inovação, investimento em tecnologia e no atendimento ao cliente; não no tapetão.

* Vinicius Carrasco é sócio e economista-chefe da Stone e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio