IPCA
0,83 Abr.2024
Topo

Carlos Juliano Barros

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Gamificação: como o trabalho vira uma gincana viciante e até perigosa

Transformar o trabalho em gincana para ganhar mais é risco para entregadores de moto - Marcello Casal Jr. / Agência Brasil
Transformar o trabalho em gincana para ganhar mais é risco para entregadores de moto Imagem: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil

08/03/2021 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Quando criança, na já distante década de 1980, eu adorava fazer uma brincadeira toda vez que ia a um McDonald's. O objetivo era encontrar, em meio ao vai e vem frenético de hambúrgueres e milk shakes, o funcionário do mês - aquela pessoa cujo retrato sorridente enfeitava por 30 dias consecutivos a parede engordurada da lanchonete.

Eu jamais poderia imaginar que meu desafio pessoal seguia a mesma lógica usada pela maior rede de fast-food do planeta para incentivar seus funcionários a bater metas: a gamificação. O fato é que, décadas depois, esse conceito viraria uma das tendências mais incensadas pelas consultorias de recursos humanos. Hoje, também é uma das técnicas mais usadas por aplicativos para motivar motoristas e entregadores a aceitar uma corrida atrás da outra.

Gamificar significa transformar qualquer atividade que não é propriamente um jogo em uma espécie de gincana. Se a teoria ainda soa pouco familiar, a prática já é velha conhecida. A gamificação está por toda parte e vai muito além do trabalho - dos programas de milhagem das companhias aéreas à contagem de curtidas nas redes sociais. A receita é psicologia pura e mexe com nossos instintos mais primitivos: quem não gosta da sensação de cumprir uma missão e, de quebra, ser recompensado por isso?

No mundo do trabalho, a gamificação nem de longe é uma novidade - taí o exemplo do "Méqui" que não nos deixa mentir. "Mas ela é potencializada pelas tecnologias de informação e comunicação", explica Bárbara Castro, professora do departamento de sociologia da Unicamp. "A ideia é deixar a prática do trabalho menos onerosa, mais prazerosa, de maneira que muitas vezes se dissolve a ideia de que você está trabalhando, enquanto está se engajando em atividades gamificadas", complementa.

Um dos campos mais férteis para a gamificação é o de treinamento de funcionários. Jogos eletrônicos que simulam conversas entre clientes e atendentes já viraram um clássico à la Super Mario Bros. Uma reportagem recente do jornal Valor Econômico traz um exemplo ainda mais arrojado. A Stefanini, uma das maiores companhias de TI do país, criou uma moeda digital inspirada no bitcoin para premiar os funcionários que se destacam nos treinamentos. Os mais bem ranqueados podem trocar o crédito acumulado por mochilas para notebook ou benefícios oferecidos por empresas parceiras.

Para um empregado em capacitação, não parece muito difícil escolher entre uma palestra modorrenta ou uma atividade lúdica capaz de render alguma recompensa - ainda que sejam apenas as palmas do chefe. Já para a empresa, a gamificação é uma ferramenta para colocar em prática um dos mantras dos departamentos de RH: engajamento.

"Mas esse engajamento subjetivo, que pode ser positivo no sentido de as pessoas se identificarem mais e terem menos sofrimento na realização do trabalho, também pode ter como consequência a extensão e a intensificação da jornada", pondera Bárbara Castro.

Indo direto ao ponto, técnicas de gamificação também têm a capacidade de converter o trabalho em uma gincana viciante e, às vezes, perigosa. O caso dos trabalhadores por aplicativo - uma das categorias que mais cresce no país, na esteira da crise econômica e do aumento da informalidade - é um dos mais representativos.

Faz parte da essência dos apps de transporte e de delivery capturar a atenção de motoristas e entregadores para engajá-los no jogo. O sistema de notas por estrelinhas e a mecânica de aceitação de corridas, por exemplo, são ferramentas básicas de gamificação. Punições e recompensas também não podem faltar. Em alguns casos, a oferta é direta e reta - "faça um número xis de corridas e ganhe um prêmio!" Em outros, mais sutil: "fique ligado nos horários de maior demanda, hein?". Mas o resultado inevitável é a intensificação do trabalho.

"Quando aumentam o valor da corrida em determinados momentos, principalmente em período de chuva, os aplicativos aceleram as motos", critica Edgar Francisco da Silva, presidente da Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR). E aí o itinerário de entrega vira um cenário repleto de obstáculos a serem superados para executar a missão: "entregador andando na contramão, subindo em calçada, passando farol vermelho - na cabeça dele, tudo aquilo faz sentido porque ele precisa ganhar o dele, já que não estava ganhando nos outros dias em que o valor era menor", explica Silva.

No caso específico dos motoboys, uma lei federal de 2011 proíbe qualquer tipo de estímulo, por razões óbvias de segurança. A Folha de S. Paulo publicou recentemente um raio-x das mortes e dos acidentes no trânsito na capital paulista - a reportagem mostra que usuários de motocicletas são as vítimas preferenciais. Especialistas ouvidos na matéria avaliam que esse fato pode estar ligado justamente à explosão dos aplicativos de entrega. Tanto é assim que a Prefeitura de São Paulo já negociou com essas empresas o fim da política de incentivos. Mas algumas ainda resistem à ideia.

Funcionário da Amazon trabalha em armazém da empresa - Eric Slomanson/Divulgação Amazon - Eric Slomanson/Divulgação Amazon
Funcionário da Amazon trabalha em armazém da empresa
Imagem: Eric Slomanson/Divulgação Amazon

Peso-pesado da economia digital, a Amazon também é pioneira em tecnologia de gamificação nos seus armazéns nos Estados Unidos. O jornal americano The Washington Post revelou, em maio de 2019, um experimento idealizado pela gigante do e-commerce para reduzir o tédio e agilizar o ritmo dos empacotadores de mercadorias. A solução era digna de ficção científica: transformar as linhas de produção em um videogame.

Sensores capturavam em tempo real os movimentos dos funcionários e alimentavam jogos exibidos em telas instaladas nas estações de trabalho. "Imagine um Tetris, só que com caixas de verdade", ilustra a reportagem. A gamificação ainda tinha um segundo round: os empacotadores de melhor performance ganhavam cupons para trocar por camisetas ou garrafinhas d'água com a marca da Amazon. Isso depois de turnos de dez ou mais horas embalando todo tipo de produto.

Quem já passou madrugadas debruçado sobre um tabuleiro de War, ou despendeu horas em frente ao computador absorto no LOL, sabe que jogos são fontes de aprendizados variados. Também representam oportunidades valiosas de confraternização. Aplicar a lógica da gamificação ao ambiente de trabalho pode até motivar equipes e incrementar a produtividade. Mas esticar a corda da competição pode gerar sérios riscos à saúde física e mental de quem na realidade não está jogando, mas trabalhando duro para pagar as contas. E, diferentemente dos videogames, nem sempre existe "continue" na vida real.