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Carlos Juliano Barros

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Auxílio emergencial mostra urgência do debate sobre renda básica universal

Políticas como a do auxílio emergencial não podem ser consideradas um programa de renda universal - Getty Images
Políticas como a do auxílio emergencial não podem ser consideradas um programa de renda universal Imagem: Getty Images

06/04/2021 04h00

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O governo federal começa a pagar hoje mais uma rodada do auxílio emergencial na pandemia. Por quatro meses, cerca de 45 milhões de pessoas vão receber parcelas que variam do piso de R$ 150 ao teto de R$ 375.

Desde o ano passado, quando entrou em cena para tentar conter o caos social desencadeado pela maior crise sanitária da história, o auxílio emergencial catapultou no Brasil um debate que há algum tempo corre solto mundo afora: é hora de finalmente tirar do papel a Renda Básica Universal (RBU)?

A rigor, políticas públicas como a do auxílio emergencial - ou mesmo a do Bolsa Família - não podem ser consideradas um programa de RBU, embora existam evidentes pontos em comum. Isso acontece ou porque os recursos são temporários ou porque atingem um número limitado de beneficiários.

Como o próprio conceito já deixa implícito, a Renda Básica Universal é uma espécie de direito fundamental - um recurso garantido pelo Estado a toda e qualquer pessoa, independente de classe ou condição social, sem qualquer condicionante. Ao pé da letra, a RBU existe em pouquíssimos lugares do mundo. É o caso do Alasca, estado americano onde os residentes recebem um cheque anual com o rateio dos royalties do petróleo.

Outras experiências vêm tentando mensurar e compreender os impactos do pagamento de uma renda básica, mesmo que elas não contemplem um público massivo. Os dados mais recentes vêm de Stockton, uma cidade de 310 mil habitantes da Califórnia.

Apesar de estar a apenas uma hora e meia de carro do Vale do Silício, principal centro tecnológico e empresarial do planeta, Stockton é um dos lugares mais pobres dos Estados Unidos. A cidade nunca se recuperou da crise financeira de 2008 e de seus efeitos devastadores sobre o setor imobiliário.

Em fevereiro de 2019, um conjunto de 125 famílias passou a receber um recurso mensal de US$ 500. A proposta era de que o pagamento se estendesse por dois anos. Por enquanto, só os resultados dos primeiros doze meses do programa foram divulgados em um site criado especificamente para a prestação de contas. O relatório final sai em 2022.

Quando o projeto de Stockton teve início, apenas 28% dos participantes estavam trabalhando em tempo integral. Um ano depois, esse índice pulou para 40%. Um crescimento bem mais expressivo que o do chamado grupo de controle, que não tinha acesso à renda básica.

A explicação é praticamente intuitiva: com a certeza de que suas necessidades primárias estariam cobertas, as pessoas passaram a ter a segurança financeira - e, sobretudo, emocional - para assumir riscos e sair à caça de um emprego.

Em outras palavras, mesmo com uma grana garantida pingando todo mês na conta, os cidadãos de Stockton incluídos no programa passaram a trabalhar mais. Qualquer semelhança com os mitos e preconceitos já desfeitos sobre o Bolsa Família - principalmente, o de que ele "estimula a vagabundagem" - não é mera coincidência.

Corta para o Brasil. Por aqui, enquanto as crises sanitária, política e econômica se retroalimentam, o número de desempregados já ultrapassa a casa dos 14 milhões.

A miséria também avança: com o término do pagamento da última leva do auxílio emergencial em dezembro do ano passado, 12,8% dos brasileiros passaram a viver abaixo da linha da pobreza, ou seja, com menos de R$ 8,20 por dia, segundo a FGV Social.

Nesse contexto, armar uma rede de proteção mais larga e perene, para além desta nova rodada do auxílio temporário que tem início no dia de hoje, é absolutamente urgente.

No ano passado, um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) já havia proposto a criação de um sistema de três benefícios mensais que se aproxima, como nunca, do ideal de universalização.

O primeiro, estimado em R$ 45, seria pago a todas as pessoas com menos de 18 anos, sem distinção. Já o segundo seria focado nas crianças de até quatro anos, no valor de R$ 90. Mas apenas as famílias comprovadamente pobres receberiam integralmente esse montante, já que a proposta prevê um desconto progressivo, de acordo com a faixa de renda. Por fim, o terceiro benefício - de R$ 44 - seria destinado a cada indivíduo em situação de extrema pobreza.

A título de comparação, o Bolsa Família paga, em média, cerca de R$ 190 por família ao mês.

A proposta dos pesquisadores do Ipea é misturar no mesmo pote os orçamentos dos principais programas sociais - no total, R$ 52 bilhões ao ano.

Otimizando a gestão para evitar que uma mesma pessoa acumule rendas de fontes diferentes, "é possível cobrir todas as crianças com um benefício universal, aumentar a cobertura entre os pobres e ter o dobro do impacto sobre a pobreza e a desigualdade, sem gastar um único centavo a mais", afirma o estudo.

Hoje, 17 milhões das 52 milhões de crianças no Brasil não recebem nenhum benefício. E quase metade das que não têm acesso a qualquer recurso está no terço mais pobre da população do país, ainda de acordo com o Ipea.

Há evidência científica abundante a favor de programas de renda básica com foco em crianças. É na primeira infância que se desenvolvem habilidades cognitivas e emocionais essenciais - uma formação que famílias financeiramente vulneráveis, infelizmente, nem sempre conseguem prover. Universalizar o acesso a uma renda básica pode ser a chave para evitar que o ciclo da pobreza se prolongue indefinidamente no país.