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José Paulo Kupfer

Manobras para o Renda Cidadã são mais um prego no caixão do teto de gastos

30/09/2020 04h00

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Por mais que as lideranças do governo no Congresso tentem encontrar um jeito de encaixar o projeto do programa Renda Cidadã em alguma PEC (Proposto de Emenda Constitucional), a tendência é que, se insistirem, mais acabem se enredando em manobras juridicamente arriscadas. A razão para isso, cada dia mais evidente, é que o teto de gastos se tornou um beco sem saída para o presidente Jair Bolsonaro.

O Renda Cidadã é uma versão mais modesta do Renda Brasil. Ambos turbinam o Bolsa Família, colocando em programas sociais de renda básica e sustentação de vulneráveis, a marca de Bolsonaro. Com o Renda Cidadã, o governo pretende incorporar mais 10 milhões famílias às 14 milhões do Bolsa Família atual, destinando-lhes valores próximos a R$ 300 mensais, a partir de 2021.

Para tanto, seriam necessários adicionar de R$ 25 bilhões a R$ 30 bilhões anuais, aos R$ 32 bilhões já previstos nas contas públicas para o Bolsa Família. O problema está em onde encontrar esses recursos adicionais sem furar o teto de gastos, e sem cortar outros programas sociais, como determinou Bolsonaro.

Essa equação não fecha. Desde do veto a que o seu programa de renda básica se valesse de cortes em benefícios sociais - determinação resumida na frase "não vou tirar dos pobres para dar aos paupérrimos" -, Bolsonaro colocou o teto de gastos num corner. Daí terem surgido as "soluções" de desviar um pedaço da verba dos fundos exclusivos para a educação, que não se submetem ao teto, e de adiar o pagamento de uma percentual dos precatórios federais, abrindo um espaço dentro do teto.

Anunciadas no meio da tarde desta segunda-feira (28), as "soluções" para viabilizar os recursos necessários para a Renda Cidadã foram rapidamente identificadas como manobras irregulares, quando não inconstitucionais. Desviar recursos da educação seria uma pedalada fiscal e postergar pagamento de precatórias, claramente um calote.

A opção do governo por saídas tão frágeis pôs a nu a corda bamba em que o teto de gastos se equilibra e colocou mais um prego no seu caixão. A perspectiva do rompimento do teto, com a consequente perda do até aqui teórico controle das despesas, provocou saída de capitais da Bolsa de Valores, com um mergulho, em dois dias, de mais de 4% nas cotações, na contramão do otimismo nos mercados internacionais.

Também no mercado de moedas, o real registrou desvalorização acentuada ante o dólar, com a taxa de câmbio superando R$ 5,60, no começo da semana. Mais ainda, sob o impacto das manobras anunciadas, que deixariam clara a incapacidade de o governo controlar seus déficits, não conseguindo evitar uma explosão da dívida pública, a curva de juros futuros empinou com força acima da média dos últimos tempos.

A derrubada abrupta e acentuada dos mercados de ativos pode ter sido a pá de cal naquilo que a regra do teto de gastos tentou impulsionar: a confiança do setor privado, com a consequente retomada dos investimentos, no reequilíbrio das contas públicas. É de se notar que, em nenhum momento desde que o teto de gastos foi adotado, essa confiança, sob a forma de investimentos, se apresentou.

Do modo como foi estruturada, a regra de controle das despesas públicas só teria como se manter com cortes crescentes de gastos obrigatórios, entre quais recursos alocados na educação, saúde, programas sociais, despesas com servidores públicos e, no limite, nas aposentadorias e pensões. Isso porque os espaços para outra despesas, sobretudo as dos investimentos públicos, já estão no osso.

Mesmo sem o forte acréscimo de gastos, permitido pelo decreto de calamidade pública, previsto para vigorar até o fim do ano, o teto já teria problemas em 2021. Com qualquer programa de sustentação dos mais vulneráveis, além do que já se prevê gastar com o Bolsa Família, o limite de despesas estabelecido na regra do teto não resistiria.

Primeiríssimo esforço do governo do vice-presidente Michel Temer, que assumiu com o impeachment da presidente Dilma Rousseff, na tentativa de carimbar sua gestão com a marca de uma economia de mercado, a regra do teto pecou pelo radicalismo e pela rigidez. Excedeu-se na tentativa de transmitir ao mercado financeiro e ao empresariado em geral que, a partir da sua adoção, o governo se retiraria de cena, encolhendo no piloto automático, e abrindo espaços para o setor privado.

Aprovado no Congresso como emenda constitucional ainda em dezembro de 2016, menos de quatro meses depois de Temer assumir definitivamente a Presidência, a regra do teto de gastos determina que durante 20 anos, com possibilidade de revisão no décimo ano, as despesas públicas federais só podem aumentar na proporção da variação da inflação do ano anterior. Ou seja, crescimento de gastos apenas nominal durante duas décadas - cinco mandatos presidenciais. Sem qualquer válvula de escape para momentos de crise.

É uma maneira de forçar, pesadamente, redução de gastos porque, pela regra, não adianta a economia crescer e a arrecadação federal subir. Eventuais superávits fiscais não podem ser destinados a ampliar gastos e aliviar pressões sociais. Tudo deve ser dirigido à redução da dívida pública.

A crença de que, com a regra inflexível, o setor privado retomaria a confiança no crescimento econômico e, assim, tomaria decisões de investimento, levando ao crescimento da economia e à criação de empregos, vê-se hoje, revela no mínimo ingenuidade. Investidores sabem reconhecer quando algo é inexequível e, portanto, não levará ao objetivo previsto.

Do ponto de vista político, o teto é uma inviabilidade. Seus criadores alegaram que as regras exporiam o conflito fiscal ao escrutínio dos políticos no Congresso. Mas, como temiam e alertavam críticos do teto como desenhado pela equipe de Temer, nesse jogo, o lado social seria o mais prejudicado.

Num país com níveis escandalosos de pobreza e graus chocantes de desigualdades, não havia como uma tal norma ficasse de pé. A propósito, sabe-se que políticas bem-sucedidas têm a sua paternidade disputada a tapas, mas aquelas mal formuladas e com resultados pífios costumam ser órfãos de pai e mãe. Quem são mesmo os autores intelectuais do teto de gastos? Há suspeitos, mas não nomes confirmados.

Outros países adotam tetos de gastos, mas nenhum é tão rígido e radical como o brasileiro. Não há, por exemplo, caso de teto inscrito na Constituição, que é uma forma de engessar a regra. Nenhum outro, igualmente, deixa de obedecer ao ciclo político, valendo apenas por quatro ou cinco anos, conforme o tempo dos mandatos presidenciais. E todos dispõem de válvulas de escape, em grande parte preservando exceções para os investimentos públicos.

Resultado: o teto é uma jabuticaba fadada a ser revisada muito antes do prazo estipulado. A revisão, diferentemente do que defensores mais renitentes do atual teto insistem em fazer acreditar, não seria para deixar um vazio no lugar. Regras de controle de gastos públicos são indispensáveis em sociedades democráticas. Sem elas, os governantes de turno ficaram de mãos livres para praticar populismos, ameaçando a própria democracia.

Seria melhor, então, arregaçar as mangas e partir para essa revisão. Foi o que fizeram, há uma semana, sem grande repercussão até aqui, três dezenas de senadores, numa frente amplíssima e pluripartidária, reunindo representantes do PT ao PSL, com parlamentares de praticamente todos os partidos entre os assinantes da iniciativa.

Trata-se da PEC 36/2020, que prevê gastos controlados extratetos, nos próximos dois anos, e uma nova regra de controle, a partir de 2023. A nova regra prevê a apresentação de um plano fiscal por cada novo governo, metas para gastos, e mecanismos de avaliação regular de despesas, com eventual revisão daquelas que não estejam funcionando como deveriam.