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Compre uma casa na Inglaterra e sinta-se (explorado como) na Idade Média

28/05/2014 17h32

LONDRES, 28 Mai 2014 (AFP) - Comprar uma casinha na Inglaterra pode transportar você para a Idade Média por causa de um punhado de direitos feudais que a Igreja e a nobreza mantêm sobre milhares de propriedades.

É possível que esta bela moradia de tijolos brancos, teto de palha e gerânios nas janelas, como as que abundam nos campos ingleses, esteja construída em um local cujos direitos de exploração de minérios, caça ou pesca foram retidos pelo nobre latifundiário que vendeu a terra há centenas de anos.

Ser proprietário da superfície da parcela não significa ser dono do subsolo, onde pode haver ouro ou gás de xisto, por exemplo.

O nobre em questão reteve o que se conhece como "direitos senhoriais" ("manorial rights" em inglês).

A Igreja tem o seu. Chama-se "chancel repair liability", literalmente "obrigação de reparar o presbítero", que é uma concessão de Henrique VIII que permite exigir dos vizinhos o custo dos reparos do altar mor dos templos anteriores a 1.536, verdadeiras joias arquitetônicas.

Elaine Hession recebeu, em fevereiro de 2014, uma carta informando que sua paróquia tinha registrado sua casa como uma das que eram obrigadas a pagar, caso fossem feitos reparos na igreja de Saint Mary, que fica a vários quilômetros de sua casa, em Stottesdon, região central da Inglaterra.

"'O que?'Como pode ser?!', me perguntei. Não tínhamos ideia de que isto existia nesta região. Meu companheiro, Jonathan, herdou a casa do seu pai e em nenhum lugar as escrituras mencionavam isso, assim ficamos totalmente devastados", contou à AFP.

Para Hession, a possibilidade de receber um dia uma conta alta é angustiante e "torna a casa invendável, (pois) ninguém compraria uma casa com tal carga vinculada a ela".

Ela decidiu resistir. "Não sabíamos quem mais era afetado na região, e começamos a perguntar e encontrar pessoas na mesma situação, e nos unimos", lembrou.

Os 25 vizinhos foram às reuniões do conselho paroquial, protestaram e acabaram conseguindo uma pequena vitória "porque pensaram que o assunto daria uma publicidade ruim". A vitória consistiu no direito de vender as suas casas permitindo que os novos proprietários ficassem isentos de pagamento.

Mas a paróquia não lhes deu nada por escrito. Além disso, "todos os afetados gostam de viver aqui e não querem vender suas propriedades para se livrar desta obrigação, assim estamos condenados a ela", explicou Hession, que lançou uma campanha nacional de protesto.

A Igreja da Inglaterra se defende, afirmando que "tem a responsabilidade financeira de 45% dos edifícios de grau 1" do patrimônio nacional, os de maior valor, conforme explica em sua página na internet.

"Isto representa uma carga financeira enorme" para os conselhos paroquiais. "Levando em conta isto, não se pode esperar que a Igreja renuncie a recursos de financiamento a que tem direito a menos que receba uma compensação adequada", alega.



- Vender a casa para restaurar a igreja - Segundo dados do Registro da Propriedades, solicitados pela AFP, 157 paróquias da Inglaterra e de Gales registraram 9.288 propriedades suscetíveis de pagar o imposto.

Adrian Wallbank teve menos sorte que Elaine Hession. Entrou em uma batalha legal contra a Igreja e acabou tendo que vender a casa para pagar a restauração de um templo, assim como os juros e as custas judiciais do processo: no total, 230.000 libras, quase 40 vezes mais do que tinham lhe pedido inicialmente.

"Não foi muito cristão" de parte da Igreja, disse à AFP Wallbank, que era então proprietário de uma granja em Aston Cantlow, 150 km a noroeste de Londres, em cuja igreja do século XIII - a que precisava de restauração - acredita-se que os pais de William Shakespeare tenham se casado.

"É muito irracional. Acho que ainda existe uma lei da época de Cromwell dizendo que não se pode picar carne no dia de Natal, essas coisas se esquecem. Menos esta", lamentou.

Wallbank recebeu a carta em janeiro de 1990. "Pediam se poderíamos ajudar a pagar os reparos do presbítero... Acho que falavam de umas 6.000 libras no total. Respondemos que o faríamos, contentes, mas que queríamos garantias de que não se tratava de uma obrigação legal, mas de um donativo".

"Escreveram um ano depois, dizendo-nos que tinham feito uma investigação exaustiva e que, de fato, era uma obrigação. Discutimos e a conta começou a aumentar até as 90.000 libras. Então, nos levaram à justiça", onde só fez aumentar.

O caso chegou à última instância, à Câmara dos Lordes - braço do Parlamento onde se sentam bispos e nobres, não eleitos, destacou Wallbank - e ele perdeu.

"Vendemos a casa e pagamos", contou. A batalha tinha durado 18 anos, lembrou Wallbank, que continua sendo granjeiro em Gales.

Umas cem mil propriedades na Inglaterra e no país de Gales - a Escócia aboliu no ano 2000 todos os restos feudais de sua legislação - estão sujeitas a estes "manorial rights", ou direitos feudais, segundo os encarregados de uma campanha por sua supressão.

"Estes direitos remontam aos tempos de Guilherme, o Conquistador", rei normando que invadiu a Inglaterra em 1066, explica o manifesto da campanha. "Não têm lugar em uma democracia do século XXI", sentencia.