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Em meio a crise econômica, escassez e filas viram 'negócio' na Venezuela

Claudia Jardim

De Caracas para a BBC Brasil

21/01/2015 14h46

Ainda não havia amanhecido quando Jennifer Artiga deixou sua casa na cidade dormitório de Guarenas para ir à capital, Caracas, exercer seu novo trabalho: pegar filas.

A jovem dona de casa foi uma das primeiras a chegar a uma farmácia à espera de produtos básicos - que têm seus preços congelados e, em consequência, estão escassos na Venezuela.

"Compro o que estiverem vendendo. Tem dia que trazem desodorante e sabão em pó, em outro papel higiênico, fralda descartável. Fico esperando para comprar", disse.

Jennifer não tem filhos pequenos e tampouco necessita de oito rolos diários de papel higiênico. Desempregada, ela compra para revender. "Muita gente não pode ficar na fila porque está trabalhando, então eu compro e vendo depois", afirmou a jovem, que chegou antes do caminhão que abastece a loja.

Um pacote grande de fraldas, um dos produtos mais cobiçados nas filas, é comprado por 120 bolívares (cerca de R$ 50 pelo câmbio oficial), mas o valor de revenda pode chegar a até 500 bolívares (R$ 115 no câmbio oficial).

O marido de Jennifer é mototaxista e se encarrega de levar os produtos até sua casa enquanto ela vai para outra fila, em outro mercado. "Assim vamos levando, eu me ajudo e ajudo outras pessoas".

Na linguagem popular venezuelana, Jennifer é uma "bachaquera", nome dado aos "profissionais" das filas que revendem os produtos de preços regulados por valores até cinco vezes mais caros, dependendo da oferta e demanda. A palavra bachaquero vem de bachaco, a formiga tanajura.

De acordo com a consultoria Datanalisis, 65% das pessoas que fazem filas compram a mercadoria para revender. "Sem produtos suficientes e com distribuição subsidiada era evidente que não haveria (produtos) para todos.

Levar vantagem nas filas se converteu em uma atividade econômica principal", afirmou à BBC Brasil o economista Luis Vicente León, diretor da Datanalisis.

'Compras nervosas'

A escassez de produtos de primeira necessidade se arrasta, com breves melhorias, há quase dois anos. Porém, se intensificou nos primeiros dias de janeiro, quando as filas voltaram a fazer parte do cenário das grandes cidades venezuelanas.

Leite, farinha de milho, café, açúcar, margarina, desodorante, sabão em pó, entre outros produtos com preços congelados, voltaram a desaparecer das prateleiras.

Na semana passada, em apenas quatro dias, 18 milhões de venezuelanos teriam consumido o estoque previsto para um mês. "Três vezes mais do que em qualquer circunstância", disse o presidente venezuelano Nicolás Maduro.

O comportamento atípico do consumidor venezuelano é visto pelo governo como reflexo de uma "campanha" apoiada em rumores e que levariam os consumidores à fazer "compras nervosas".

Nesta semana a TV estatal relançou uma campanha para pedir à população que compre apenas o necessário com a frase: "Pelo bem de todos, relaxe e tenha confiança em seu país. Abaixo as compras nervosas".

Além dos "bachaqueros", as longas filas deram origem a outra ocupação, a de "guarda puesto (guardador de lugar)". Geralmente são jovens os primeiros a chegar nas filas para garantir o lugar mais próximo à entrada do mercado.

A disputada posição é vendida a 300 bolívares - equivalente a US$ 47 do mercado oficial ou menos de dois dólares se cotado no mercado paralelo. Se o guarda puesto fizer três filas diariamente, em uma semana terá ganho pouco mais que o salário mínimo fixado em 4.890 bolívares (US$ 776 no câmbio oficial ou US$27 no paralelo).

"A falta de controle é tanta que uma situação assim se presta pra virar emprego. As pessoas resolvem a vida como podem", disse o comerciante Jayson Fernandez, após esperar duas horas para comprar fraldas e papel higiênico. "Isso se chama ineficiência. Até quando vamos tolerar isso eu não sei".

'Guerra'

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, diz enfrentar uma "guerra econômica" orientada em estocagem de produtos e especulação de preços com o suposto objetivo de desestabilizar seu governo.

Por outro lado, empresários e políticos opositores afirmam que o controle de câmbio e a insuficiência de dólares para importação de produtos acentuam a escassez e afastam novos investimentos no país.

Com apenas 22% de popularidade, Maduro enfrenta o pior cenário econômico desde que assumiu a Presidência, logo após a morte do líder venezuelano Hugo Chávez.

A economia está em recessão e a inflação é superior a 60%. O cenário coloca em risco a permanência de programas sociais, responsáveis pela redução da pobreza - transformados em pilar de sustentação da base chavista.

Em uma economia cujo único motor é a exportação petroleira, a queda do preço do barril no mercado internacional criou um novo drama interno.

Em um giro internacional de 12 dias, Maduro tentou convencer os líderes dos países petroleiros, incluindo a Arábia Saudita, a reduzir a produção de petróleo para elevar o preço do barril. Não houve acordo.

'Tá todo mundo louco'

Natali Padilla esperava em uma fila, com sua filha de um mês embrulhada num cobertor desbotado, para entra em um mercado no centro de Caracas. Irritada, a jovem queria comprar fraldas descartáveis.

"Parece que a situação piorou, tá todo mundo meio louco comprando o que acham pela frente", disse Natali. A jovem observava os militares que distribuíam senhas para ordenar a fila e colocava em dúvida o fim que teriam aqueles produtos.

"O problema são os revendedores que compram aqui e os empresários que estocam a comida. Como é possível que de repente apareçam toneladas de coisas escondidas por aí?".

Na semana passada, o governo disse ter encontrado 1,5 milhão de fraldas descartáveis e 65 mil latas de leite em pó estocadas em um armazém em Zulia, um dos estados fronteiriços com a Colômbia. Estima-se que 30% dos produtos importados - entre alimentos e medicamentos - são contrabandeados para o país vizinho.

Em outro mercado no centro da capital, o aposentado Ivan Rojas esperava na fila para comprar papel higiênico, sem reclamar. "Nós já enfrentamos situações mais difíceis quando tentaram derrubar Chávez.

Não conseguiram naquela vez (2002-2003) e não conseguirão agora", disse. "Se querem derrubar o governo que esperem até as eleições e veremos o que o povo diz".

O discurso anual do presidente no Congresso previsto para esta quarta-feira é aguardado com expectativa.

Maduro deverá anunciar novas medidas econômicas que podem incluir desvalorização da moeda e ajuste de preços - "remédio amargo" criticado durante anos por seu mentor Hugo Chávez.