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'Vestiu um avental, tudo muda', diz cineasta e cozinheiro relatando preconceito 'brasileiro contra serviçais'

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Felipe Souza

04/07/2016 15h53

Cineasta, músico e escritor. Anderson França, o Dinho, de 41 anos, mora na periferia do Rio de Janeiro e trabalha desde o início do ano como cozinheiro.

Na última semana, um texto dele sobre um jantar em uma área nobre carioca viralizou após ser publicado no Facebook. O texto fala sobre preconceitos sofridos por ele e pela equipe de cozinheiros que trabalha com a mulher dele, chef de um buffet que atende em domicílio.

"Maluco acha que é melhor porque fez produção cultural e usa um rádio da firma na cintura", diz um trecho da publicação, que, segundo ele, não conta a história completa. França relata que a confusão começou após sua cliente, que mora em uma área nobre carioca, tratar mal tanto ele como seus colegas de trabalho.

França acha que isso se deve a um sentimento de superioridade em relação a prestadores de serviço. "Vestiu um avental, tudo muda", diz ele.

O texto registrou mais de 20 mil curtidas e 6.000 compartilhamentos em menos de uma semana na rede.

Leia o depoimento de Anderson França à BBC Brasil:

"O que aconteceu foram palavras, expressões e comportamento que configuram assédio moral. Presenciamos humilhações verbais.

Fomos fazer um buffet para um cliente e, durante a madrugada, uma pessoa começou a questionar a qualidade da comida. A gente percebeu que, na verdade, era algo além daquilo.

Então, ela começou a fazer questionamentos cada vez mais pessoais.

Ela passou a expor a equipe publicamente até com xingamentos, falando alto. Ela expôs todas as pessoas e a chefe do trabalho, que é a minha esposa. Sentimos muito preconceito naqueles discursos.

Aquilo ocasionou uma pressão insustentável e administramos até o ponto que a gente não conseguiu. Guardamos tudo e fomos embora.

O pior é que no evento tinha uma galera que milita em coletivos de direitos humanos, feministas, de arte e cultura. Eu venho do setor de cultura e esperava muito mais consciência deles na relação do trabalho. Como pode pessoas terem discursos tão contraditórios?

Tem muita gente também que se diz um cara de esquerda, mas nunca entrou numa favela. Nunca pegou um trem. Como essa pessoa vai dialogar com a periferia?

Contradições

O texto que eu publiquei no Facebook não tinha o intuito de expor ninguém, mas deixar claro que local estava cheio de contradições, como toda a sociedade brasileira. Não adianta a gente querer um país mais justo se a gente não trata bem as pessoas que prestam serviço para a gente.

Não adianta eu querer viver num lugar melhor se eu quiser ser presidente da empresa onde trabalho para continuar explorando as pessoas da mesma forma que eu já sou explorado. Se a gente fala de mudanças, precisamos falar de mudanças individuais. O problema é que nós não somos educados para isso. Aqui, você é arrebatado da sua intelectualidade quando veste um avental.

Conheço estrangeiros que dizem que tem coisa que eles só veem no Brasil, como babá vestida de branco empurrando carrinho na rua.

A grande crítica é que, independentemente de ser de esquerda ou coxinha, a classe média brasileira é colonialista. Ela não consegue romper com o sentimento de que precisa ter um porteiro, uma empregada e um elevador de serviço.

Precisamos dialogar com a classe média e mostrar que toda a classe trabalhadora é digna. Enquanto não trabalhar esse pensamento, seja na direita ou na esquerda, a gente não vai mudar o país.

Eu estou fazendo um filme, mas, ao mesmo tempo, sirvo café. De um lado, eu sou tratado bem quando levo um roteiro para um diretor de cinema. Mas se eu saio, visto um avental e volto, ele começa a me desrespeitar, me tratar com inferioridade.

Nós estamos vivendo um problema seríssimo de classe. E, ao mesmo tempo, estamos passando por um momento econômico em que pessoas qualificadas estão fazendo trabalho braçal.

Prejuízo e medo

Depois dessa publicação no Facebook a minha página cresceu, mas nós já percebemos um prejuízo em relação a clientes. Nós recebemos do cliente que tivemos problemas o feedback de que ele assumiu o erro, mas não a responsabilidade pelo prejuízo.

Ele não pagou os R$ 3.000 que perdemos naquela noite e não pretende pagar. A gente entende que tudo bem, mas o pior é que eles podem prejudicar nossa imagem com outros clientes. Eles podem falar: 'Vão contratar aqueles caras do post?'.

Veio uma sensação de culpa de ter falado aquilo. Deveria ter sofrido calado para garantir emprego e um salário para pagar as contas no fim do mês.

Nas redes sociais, também tivemos alguns retornos negativos, em meio à maioria esmagadora que nos apoiou. Um cara até chegou a dizer que a gente estava de 'mimimi'. Outros dizem: 'Os caras são os favelados, reclamam quando têm trabalho. Eles são vagabundos, fogem de trabalho.'

O fato é que não aceitamos que alguém quer rebaixar uma pessoa, humilhar todo mundo da periferia desse jeito só porque ela mora em Ipanema."