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Quanto cresceu a dívida da Argentina na gestão Macri --e por que isso pode ser seu calcanhar de aquiles

03/11/2016 08h52

Um grupo de economistas e políticos demonstra preocupação com os níveis inéditos de endividamento que a Argentina alcançou no governo de Mauricio Macri, que completa um ano no poder daqui um mês.

Esse nervosismo contrasta com o entusiasmo em alguns setores da sociedade e meios de comunicação, que elogiam a gestão do presidente com frases como "não viramos a Venezuela" - o que é, ao mesmo tempo, uma crítica às políticas "populistas" adotadas pelo governo anterior, de Cristina Kirchner.

Com o controle cambial e algumas medidas concretas - como ajustar tarifas de serviços públicos, negociar com a oposição e buscar mais transparência nos números - Macri conseguiu gerar confiança interna e externa para pagar a dívida de US$ 9,3 bilhões de dólares (R$ 33,35 bilhões) aos "fundos abutres".

Essa é a alcunha geralmente dada aos fundos especulativos que compraram títulos de credores que não aceitaram a reestruturação da dívida feita por Buenos Aires entre 2005 e 2010.

Com isso, a Argentina voltou aos mercados internacionais depois de 15 anos. E aproveitou isso - nos últimos 11 meses, governos, províncias e bancos argentinos receberam US$ 40 bilhões (R$ 129 bilhões) em empréstimos, o que elevou a dívida pública em cerca de US$ 200 bilhões (R$ 647 bilhões), o que representa quase 30% do PIB (Produto Interno Bruto).

Os números são alarmantes para alguns economistas, mas não pelo que revelam, já que a Argentina continua sendo um dos países menos endivididados a nível regional.

O que eles temem é que a chamada "chuva de dólares" possa representar um retrocesso diante de todo o esforço para baixar a inflação, reduzir o deficit e recuperar o crescimento.

Os traumas do passado

O medo é embasado em experiências anteriores, quando um alto deficit fiscal foi financiado com emissão de títulos de dívida sem que houvesse uma mudança na forma como a Argentina paga suas contas.

Guardadas as devidas proporções, foi o que aconteceu em 2001, quando o esquema de financiamento internacional foi interrompido de repente em meio à profunda crise política e econômica que terminou com o famoso "corralito" (restrição dos depósitos bancários) e em uma revolta social que deixou 39 mortos em protestos.

E não foi a única vez - em 1989, após vários planos governamentais para conter a inflação usando empréstimos para financiar o deficit não funcionarem, criou-se um ambiente de incerteza que disparou a fuga de capitais e gerou a hiperinflação, o que acelerou a queda do então presidente Raúl Alfonsín.

E aconteceu também durante o regime militar, em 1979, quando o governo realizou várias minidesvalorizações sem reduzir o gasto e não conseguiu conter a perda de reservas, o que o obrigou a fazer uma desvalorização radical e chegar, mais uma vez, à hiperinflação.

Os argentinos sabem do risco envolvido em emitir títulos de dívida, um mecanismo de financiamento que em tese é necessário e utilizado por todos os governos do mundo.

Não por caso, a dívida é uma das questões que a ex-presidente, que representa uma parte importante da oposição, utiliza para criticar Macri.

"Adivinhem quem vai pagar?", perguntou Cristina recentemente nas redes sociais. "Não serão os bancos estrangeiros, não será o governo, serão os milhões de argentinos e argentinas."

Por que isso pode ser um problema

Apesar de muitos serem críticos a Cristina, alguns analistas que questionam o endividamento do governo Macri compartilham a preocupação da ex-presidente.

E, em termos gerais, a explicação é a seguinte: os empréstimos que o governo está recebendo não estão sendo gastos em planos de longo prazo - ou seja, que podem gerar dinheiro para pagar a dívida -, mas em pagamentos de fundo de caixa, redução de deficit fiscal e aumento das reservas internacionais.

A pergunta é: o que vai acontecer com a dívida e com os gastos do governo no próximo ano?

Os especialistas consultados pela BBC Mundo, serviço em espanhol da BBC, explicam que os investimentos mistos e privados de cerca de US$ 50 bilhões (R$ 162 bilhões) que Macri disse ter realizado não são todos diretos - e podem ser considerados "de andorinha".

Em outras palavras, são capitais que podem voltar a sair do país em qualquer momento de incerteza ou crises internacionais.

Macri manteve o nível alto de gastos públicos do governo anterior, em parte por causa da pressão de sindicatos e em parte, segundo analistas, porque em 2017 acontecerão eleições legislativas.

A Argentina é um dos países com maior gasto público da América Latina, e 80% do despendido é destinado a serviços sociais como saúde e educação ou econômicos, como infraestrutura, por exemplo.

Se o governo continuar gastando mais do que tem, advertem os especialistas, cedo ou tarde ficará sem fundos para pagar a dívida. E, com isso, poderia repetir cenários do passado mencionados acima.

"No momento, tenhamos calma - pelo menos até setembro ou outubro do ano que vem", disse Hector Rubini, professor de Economia da Universidade del Salvador, em Buenos Aires.

"A preocupação é que vemos um grande crescimento do deficit fiscal e da dívida pública, mas não do investimento produtivo e isso, somado ao atraso do tipo de câmbio real, pode provocar sérias dúvidas no futuro sobre a capacidade efetiva do Estado de gerar dólares e pesos o suficiente para cumprir seus compromissos com os credores", disse à BBC.

"A nossa sociedade pensa que é muito mais rica do que é e está inclinada demais a desacreditar qualquer governo que peça um ajuste", afirmou Juan José Cruces, diretor do Centro de Investigação de Finanças da Universidade Torcuato di Tella, em Buenos Aires.

"Eu tenho a esperança de que o governo faça (o ajuste) antes das eleições de 2017", acrescentou, em referência a um programa que implicasse reduzir significativamente o gasto público, que é historicamente alto.

"O risco é que nunca façamos isso, e aí sim estaremos em apuros."

Um corte certamente poderia afetar os programas sociais que Macri prometeu manter, algo talvez ainda menos popular do que o endividamento.

A BBC Mundo tentou conversar com o Ministério da Fazenda argentino sobre o assunto, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.