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De 170 mil para 2,8 mil carros por ano: os números do colapso da indústria automotiva na Venezuela

21/01/2017 15h03

No país da gasolina mais barata do mundo, os carros praticamente não são fabricados e nem vendidos.

A indústria automobilística da Venezuela, que chegou a exportar para países vizinhos, encolheu nos últimos anos até quase desaparecer, vítima da crise que atinge o país e o seu modelo importador.

Na última segunda-feira, 400 trabalhadores da FCA (antiga Chrysler) na terceira maior cidade do país, Valencia, se apresentaram à fábrica para terminar a montagem de 110 veículos.

Depois de duas semanas, eles voltarão para casa. Na cidade também estão, até junho, os empregados da Ford, a empresa de maior produção.

As fábricas da zona industrial de Valencia, que concentram 75% da montagem de veículos na Venezuela, estão vazias. Dos 11 mil trabalhadores, apenas dois mil estão em atividade, segundo os sindicatos.

As lojas de muitas concessionárias na capital Caracas também estão fechadas ou vazias.

"Calculo que as fábricas estão operando com 10% da sua capacidade", disse Damiano del Vescovo, presidente da Câmara de Empresários do Estado de Carabobo, cuja capital é Valencia.

Segundo o sindicato dos trabalhadores da FCA (Fiat Chrysler Automobiles), em 2017 a marca pretende fabricar 600 veículos, embora a fábrica tenha capacidade para fazer 14 mil.

O caso é parecido com o da Ford ou General Motors, com sede também em Valência.

Mas os dados vão mais além.

A indústria que chegou a produzir 170 mil automóveis por ano em 2007, no ano passado - embora faltem informações do mês de dezembro - produziu apenas 2.768, segundo a Câmara Automotiva da Venezuela.

"É a pior crise desde que a indústria foi instalada em 1962", afirmam os sindicatos.

De janeiro a novembro de 2016, a produção contraiu 75,6% em relação ao mesmo período de 2015.

As razões

Mas como se chegou a esta situação?

Na Venezuela tem indústrias que montam os veículos, e para isso as fábricas precisam importar grande parte dos componentes.

"Há mais de três anos as matrizes não mandam para as montadoras as peças dos veículos", explica Del Vescovo.

E isso acontece porque as filiais venezuelanas não conseguiram ter acesso aos dólares, que na Venezuela são distribuídos pelo Estado, nem repatriar o capital e nem trocar seus bolívares, a moeda venezuelana que perdeu valor rapidamente nos últimos anos.

A crise fez com que se acabassem os dólares do Estado, que durante anos fluíram sem cerimônia para as automotivas na época da bonança do petróleo.

Agora, o país tem menos divisas e recebe produtos de primeira necessidade, que igualmente ficam escassos.

O governo, que importa da China grande parte do parque automobilístico do Estado, não respondeu ao pedido da BBC Mundo - o serviço em espanhol da BBC - para ouvir os responsáveis pela indústria e comércio da Venezuela.

A época do boom

Tudo era diferente em 2005, 2006, 2007 e 2008, quando eram fabricados por ano até 170 mil veículos e importados outros tantos por causa da grande procura.

Aqueles eram tempos em que o Estado subvencionava os veículos e os isentava de impostos.

O preço baixo e os empréstimos bancários fáceis contribuíram para o boom. Ter um veículo era um luxo ao alcance de quase todo mundo.

"Vamos deixar claro: o comprador de um Ford Explorer naquela época não é o mesmo de agora", diz um vendedor de uma concessionária Ford em Caracas que prefere manter o anonimato.

Agora o carro é muito mais caro, com preço próximo ao do mercado internacional.

Nos bons tempos, em 2007, o funcionário da concessionária conseguia vender até 25 veículos por mês. Agora, vende três, dois ou mesmo um apenas.

O preço baixo criou uma procura tão grande que não havia oferta para satisfazê-la.

Assim, quem comprava um carro novo podia vendê-lo pouco depois e não apenas recuperar o dinheiro gasto, mas adquirir outro recém-saído da fábrica.

E tudo isso com o tanque cheio de gasolina, que saía mais barato do que uma bisnaga ou uma garrafa pequena de água. Mas isso ainda se mantém.

"É uma indústria que funciona à imagem e semelhança do mercado petroleiro: a menor entrada de divisas tem como consequência a queda da produção", disse Christian Pereira, presidente da Federação Unitária dos Trabalhadores da Indústria Automotiva e de Autopeças (Futaac, em espanhol).

A queda

A partir de 2013, começou uma queda que se acentuou em 2015 e 2016 e que promete continuar em 2017 já que a Ford, que produziu 2.253 dos 2.768 veículos de todo o setor em 2016 (faltam os dados de dezembro), vai parar até junho.

A Ford é a marca mais bem sucedida na Venezuela.

No final de 2015, firmou com o governo um convênio que permite que seus veículos sejam pagos parte em dólares e parte em moeda venezuelana.

A ideia é que as empresas possam gerar suas próprias divisas para manter ativa a indústria.

Este modelo foi logo seguido por outras companhias, mas no momento os resultados não são os esperados, já que as compras só podem ser feitas por particulares e empresas com uma boa quantidade de divisas. E isso escasseia em tempos de crise.

"As matrizes mantêm as fábricas, mas elas estão tecnicamente fechadas", diz Del Vescovo, líder dos empresários do Estado de Carabobo.

A sobrevivência

Das automotivas consultadas, apenas a Toyota respondeu às perguntas da BBC Mundo sobre a sua situação, a da indústria em geral e sobre como sobrevive.

"A Toyota está comprometida com o mercado venezuelano e continuamos moderadamente otimistas sobre a prosperidade futura deste grande país".

"Nosso plano é continuar maximizando nossas operações para estarmos prontos quando o mercado se recuperar", disse a porta-voz da empresa japonesa.

A maior parte das multinacionais, como a Ford, tiraram dos seus balanços consolidados as operações na Venezuela.

Foi uma estratégia para que as perdas atuais não se reflitam nos balanços corporativos e as ações na bolsa de valores não sejam comprometidas.

Além disso, elas podem viver da renda e dos benefícios do passado.

"As fábricas e concessionárias que souberam administrar um pouco o lucro na época das vacas gordas têm mais chances de resistir", diz o vendedor da concessionária Ford.

"O controle do câmbio caiu como uma luva nesta indústria", diz o sindicalista Pereira.

"Elas terminaram produzindo menos e obtendo mais lucros do que em outras partes do planeta", diz, sobre o dólar protegido, que dava às automotivas uma grande capacidade de importação.

"Por isso elas resistiram, por isso não foram embora", afirmou.

O presidente Nicolás Maduro destacou esta semana a "potencialidade imensa" da indústria, inclusive para exportar, e atribuiu a situação à não aplicação de medidas já aprovadas pelo governo.

E o futuro?

Apesar dos números, pode ser que a indústria automotiva venezuelana ainda não tenha chegado ao fundo do poço.

Embora a curto prazo a receita do petróleo tenha aumentado, dificilmente o governo a destinará de novo ao setor se continuar a crise da falta de alimentos e remédios, entre outras coisas.

"Em mais de 70 anos, a indústria não foi capaz de passar de um modelo montador para o de produtor de autopeças", critica o líder sindical Pereira, para quem a mentalidade dos tempos da bonança não foi mudada.

Este é o lamento mais ouvido em qualquer setor da economia em um país que pouco se preocupou em produzir enquanto usufría tudo do petróleo.