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Crise, falência estatal e desemprego levam a explosão no número de moradores de rua no Rio

15.jun.2017 - Quantidade de moradores de rua praticamente triplicou no Rio nos últimos anos - BBC Brasil
15.jun.2017 - Quantidade de moradores de rua praticamente triplicou no Rio nos últimos anos Imagem: BBC Brasil

15/06/2017 05h22

Jorge Luiz de Souza já foi pedreiro na construção civil, operador de caldeira na indústria cervejeira, operário na indústria química, dirige caminhões. Mas sua rotina hoje, aos 37 anos, se resume a passar as noites na rua e os dias procurando emprego no Rio.

"Experiência eu tenho muita, só não faço dinheiro", diz com uma risada amarga, levando nas costas a mochila acumulando seus principais pertences.

"O terrível é que hoje não tem nada. Todas as portas estão fechadas. Eu sei fazer, é só ter oportunidade. Mas ninguém está contratando, independentemente da minha experiência."

Jorge acabara de receber um pão com presunto e um café quente servido num copo de plástico no Largo da Glória, onde cerca de 300 moradores de rua se juntam bem cedo nas quintas-feiras à espera do café da manhã oferecido pelo Projeto Voar.

O grupo de voluntários repete a ação três vezes por semana, em três pontos diferentes no Rio. O número de moradores de rua teve um aumento vertiginoso nos últimos anos, tendo praticamente triplicado de 2013 para cá.

Em abril deste ano, o número de pessoas vivendo nas ruas da cidade chegou a 14.150, de acordo com a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos - contra 5.580 em 2013.

Para a secretária da pasta, Maria Teresa Bergher, a conjunção de dificuldades do momento atual ajuda a explicar o aumento.

"Vivemos uma crise econômica muito séria no país e o Estado do Rio está falido. O desemprego agora apresentou queda em todas as regiões do Brasil, menos no Estado do Rio", afirma Bergher. "Tudo isso faz com que tenhamos uma situação bastante séria."

É o avesso do otimismo despertado com o ciclo dos megaeventos dos últimos anos, diante da Copa do Mundo e dos Jogos Rio 2016.

"Muitas pessoas vieram para o Rio nos últimos anos porque a cidade foi vendida com uma imagem de beleza e de promessa. Mas muitas pessoas que vieram com esperança de emprego e de uma vida melhor acabaram ficando nas ruas", diz a secretária municipal.

Primeira vez na rua

Jorge já tinha ficado desempregado antes, mas a diferença é que sempre aparecia alguma coisa em pouco tempo. Agora não. Desde a demissão coletiva da empresa da área química onde teve carteira assinada por sete anos, não consegue nada.

Nunca tinha se imaginado dormindo na rua. Mas foi o que restou. Atualmente, quando não consegue vaga em um abrigo da prefeitura, se encolhe para dormir nas calçadas do Centro ou da Glória, e rapidamente aprende para onde não deve voltar.

É o caso do Aterro do Flamengo, onde tentara passar a noite anterior ao café da manhã, ao lado de sua mulher. Até que presenciaram três assaltos violentos em sequência. "A polícia fica no Aterro até as 22h e depois é um Deus nos acuda. Não dá para dormir lá", conclui Jorge.

O casal então buscou refúgio no monumento ao IV Centenário do Descobrimento do Brasil, na Glória. Inaugurada em 1900, a obra é pontuada por uma imponente estátua de Pedro Álvares Cabral, erguendo uma bandeira em postura de vitória e com inscrições louvando a descoberta da "terra bendicta". À noite, o pedestal de granito fica cercado de moradores de rua.

Efeito dominó

Silvia Aparecida de Souza, parceira de Jorge, está na mesma situação que ele. Perdeu o emprego de babá há um ano e meio. A patroa também foi mandada embora do trabalho e, ato contínuo, teve que demiti-la.

"Foi efeito dominó, caiu uma e depois a outra", resume Silvia, que tem 46 anos. "Foi muito difícil." De lá para cá, ela não conseguiu mais nada. "E não estou escolhendo não, faço faxina, o que pintar."

Os dois são de Petrópolis, na região serrana do Rio. Moravam juntos, mas tiveram que abandonar o endereço há dois meses, e agora passam a maior parte do tempo separados. Jorge dorme na rua ou em abrigos da prefeitura; Silvia geralmente dorme na casa da avó em Caxias, na zona norte do Rio.

"Ficar na rua é muito perigoso para mulher. Se durmo com ele na rua, ele não consegue dormir, preocupado comigo", diz Silvia. "Mas quando estou na casa da minha avó e ele na rua, eu também não consigo dormir, preocupada com ele."

No Dia dos Namorados, no começo da semana, eles passaram o dia juntos, mas tiveram que se separar novamente à noite. "A gente fica com muita saudade", lamenta Silvia.

100 mil na rua

A assistente social Vanda Amorim coordena os cafés da manhã na Glória há quase 11 anos. Ela diz que, do começo do ano passado para cá, o número de frequentadores dobrou. O projeto passou a receber uma média de 150 moradores de rua em um dia para, atualmente, mais de 300 pessoas por edição.

"Temos visto pessoas que não fazem parte daquele contexto normal de moradores de rua, que já vivem há muitos anos de catar material reciclado ou, por causa de drogas, já se acomodaram nessa vida de sobrevivência na rua", explica Vanda.

"Têm outro perfil, estão mais arrumadinhas, têm uma linguagem boa. Esses aí não querem perder tempo. Geralmente tomam café para suprir a fome e vão logo embora", descreve. "Estão correndo atrás."

De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Brasil tem pouco mais de 100 mil pessoas vivendo nas ruas. A estimativa se baseia em dados 2015, já que não há estatísticas nacionais para medir a população de rua. Assim, é difícil acompanhar o avanço desses números e o impacto da recessão.

"O tamanho da população em situação de rua no Brasil sempre tem relação com pobreza, desigualdade social, infraestrutura urbana", afirma o pesquisador do Ipea Marco Antonio Carvalho Natalino, autor do estudo.

"A redução da atividade econômica e o desemprego não são os únicos fatores que levam as pessoas para as ruas. Mas com o aumento desses índices, estamos vendo isso com mais força agora. É visível. Há um aumento da população em situação de rua em todas as grandes metrópoles no Brasil", afirma Natalino, especialista em política pública e gestão governamental.

Natalino critica a falta de dados nacionais e atualizados para acompanhar a situação real no país, que seriam essenciais para formular políticas públicas adequadas para atender às demandas de moradores de rua.

"Populações de rua já costumam ser invisibilizadas. O Estado as torna ainda mais invisíveis por não produzir informações. Ele para de olhar para esse público como alvo de políticas sociais e de serviços públicos", considera.

Em São Paulo, cidade que concentra a maior população e o maior número de moradores de rua no país, os números estão defasados.

O último censo foi realizado em 2015, não havendo ainda uma atualização na gestão do prefeito João Doria (PSDB). De acordo com os dados disponíveis, a população de rua na cidade aumentou de 14.478 em 2011 para 15.905, em 2015.

Peregrinação por emprego de barriga vazia

Entre os pertences acumulados na mochila preta de Jorge está uma pasta com cópias de seu currículo, que já submeteu a empresas do Rio, de Petrópolis e de Minas Gerais.

O documento lista suas experiências profissionais, ensino médio incompleto e destaca, entre suas principais características, "excelente relacionamento interpessoal e capacidade de liderança".

Após o café da manhã, ele entrega uma cópia para voluntários do Projeto Voar, pedindo que lhe avisassem sobre oportunidades.

Sua rotina tem sido essa. "Amanheceu, saio à procura de emprego, vou batendo em portas para ver o que consigo. Só não consigo ir muito longe porque não tenho dinheiro para a passagem (de ônibus)", diz. "Você vai gastar uma energia e não tem um alimento no estômago. É duro".

Mas ele enfatiza que só está na rua por causa do desemprego.

"Não sou dependente químico, não consumo bebida nenhuma, tenho exames toxicológicos. Estou em busca de emprego para poder trazer sustento para mim e para a minha família."

Berço partido

Jorge teria nascido em uma família com boas condições financeiras. Mas seu pai foi assassinado quando ele ainda estava na barriga da mãe. "Mataram meu pai para roubar os caminhões que ele tinha. A minha mãe me botou no mundo e me largou. Com 15 dias de vida, meu padrinho me pegou para criar."

Ele viveu com o padrinho até os 7 anos, e depois ficou de casa em casa, "que nem cigano". Só conhece as histórias de como as coisas eram antes. "Meu pai tinha uma vida boa, uma família boa, ele transportava boi para corte, cortava lenha e transportava toras."

Da infância quebrada vieram dois sonhos. O primeiro era constituir uma família, que fez com que se casasse já aos 16 anos. Virou pai aos 22 anos, e hoje tem três filhos do primeiro casamento.

Com idades de 7, 12 e 14 anos, as crianças moram em Petrópolis com a mãe. Jorge diz que, com o desemprego, não tem conseguido enviar ajuda financeira.

"A minha filha vai fazer 13 anos neste mês e pela primeira vez estou com receio de não poder dar nada. Todo ano eu dou um bolinho, fazemos uma festinha, mas esse ano eu não tenho o que fazer", lamenta.

"Não sou nenhum político igual a esses aí... Vivo do trabalho mesmo", diz ele.

O segundo sonho era dirigir um caminhão e trilhar o caminho do pai que não conheceu. Recentemente, conseguiu trocar sua carteira de habilitação para dirigir carretas - "uma grande conquista". Mas os empregos na área minguaram.

"Deixei currículo em várias transportadoras, mas não está tendo vaga. Tem empresa com 30 carretas paradas. Imagina. Isso são 30 pais de família! Está tudo parado, o país está parado, não tem o que transportar."

Jorge passou no teste para trabalhar como motorista de ônibus no Rio - mas também não apareceram vagas por enquanto.