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Como ficam as negociações entre patrões e empregados com a reforma trabalhista

Ingrid Fagundez

Da BBC Brasil em São Paulo

11/07/2017 11h00

O debate sobre a reforma trabalhista, que deve ser votada nesta terça-feira (11) no Senado, girou em torno de palavras como "flexibilização", "modernização" e "perda de direitos". Nenhum desses termos, no entanto, explica como a proposta pode mudar as relações entre patrões e empregados.

Aprovado na Câmara, o texto altera a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que regulamenta o contato entre empregadores e subordinados. Se posto em prática, ele permite que elementos como jornada de trabalho, banco de horas e intervalo sejam negociados diretamente com o superior. Hoje, a CLT exige a presença de um sindicato e estabelece condições mínimas que não podem ser alteradas.

Para mostrar como os acordos devem funcionar na prática, a BBC Brasil conversou com professores de direito do trabalho e relações trabalhistas sobre o assunto. Tire abaixo suas principais dúvidas sobre o tema.

O que muda nos acordos?

Hoje as condições de trabalho são negociadas com a participação dos sindicatos, responsáveis, segundo a Constituição, pela "defesa dos direitos e interesses" das categorias. Tópicos como jornada, remuneração e auxílios só podem ser alterados desde que confiram ao trabalhador uma situação melhor do que a prevista na lei.

Por exemplo, não seria possível negociar um intervalo de almoço menor do que uma hora, padrão estabelecido pela CLT. Mas com a reforma, os trabalhadores poderão negociar um intervalo de até meia hora, o que pode ser visto como uma desvantagem. Os acordos passariam a prevalecer sobre o que diz a lei, mesmo que sejam menos favoráveis para o funcionário.

A medida abre a possibilidade de negociações feitas diretamente entre funcionários e chefes, sem a mediação do sindicato.

Mas alguns pontos, como seguro-desemprego e 13º salário, não poderão ser alterados.

A chamada "flexibilização" divide opiniões. Enquanto uns a veem como uma possibilidade de tornar as contratações mais dinâmicas, personalizando as regras para cada caso, outros a consideram uma forma de destruição da CLT, facilitando o abuso de trabalhadores.

Quando as negociações são feitas diretamente com os patrões?

A reforma permite a negociação direta entre chefe e subordinado para funcionários com diploma de nível superior e salário maior do que dois benefícios máximos do INSS, que hoje somam R$ 11 mil. As partes podem estabelecer novos padrões de jornada, bancos de horas, intervalo, participação de lucros e outros pontos.

Essa possibilidade, no entanto, não se estende a quem tem um salário mais baixo. Nesse caso, a figura do sindicato continua presente na discussão sobre condições de trabalho e é por meio dele que acordos coletivos são fechados. Isso porque o artigo da Constituição que determina o papel dessas instituições continua em vigor.

Os professores entrevistados pela BBC dizem que, por trás da divisão, está a ideia de que funcionários com salários melhores têm mais poder de barganha para negociar de igual para igual com os patrões. Já os que ganham menos precisariam do apoio dos sindicatos para não saírem perdendo.

O professor Fernando Peluso, especialista em direito do trabalho do Insper, cita outro argumento para a divisão: interesses diferentes.

"Por que você imagina que o mesmo princípio se aplica para quem ganha um salário mínimo e o executivo de uma empresa que ganha R$ 60 mil por mês? Isso parece descabido nos dias atuais, porque os interesses são díspares", comenta.

"Você imagina um executivo que ganha R$ 60 mil saindo trinta dias de férias e a empresa ficando sem CEO? Qual é o mal de dividir as férias em três períodos? Você está modernizando a situação", completa Peluso.

Crítico da proposta, o professor de direito do trabalho da USP Flávio Roberto Batista pondera que nem todas as pessoas cujo salário ultrapassa R$ 11 mil são altos executivos com força de negociação.

Direito de imagem Getty Images Image caption Cartazes de greve em protesto da reformas do governo Temer em Brasília

Ele menciona bancários e até armadores da construção civil que atingem esse patamar, mas não têm poder na empresa para defender seus interesses. Sem o suporte do sindicato, diz Batista, esse grupo ficaria a mercê do chefe - ainda mais em um período de crise econômica, quando ninguém quer ser demitido:

"(O projeto) pega uma faixa muito ampla de trabalhadores. Pode precarizar o setor técnico-científico. Várias pessoas que têm uma boa carreira vão passar pela experiência da terceirização. O que são os terceirizados? São aqueles que não têm representação sindical. Eles ficam fragilizados."

Batista afirma que outros critérios, como o número de subordinados, deveriam ter sido usados para fazer a separação dos grupos.

O que são as comissões de representantes dos trabalhadores?

A reforma trabalhista traz de volta um personagem que estava presente na Constituição de 1988, mas nunca foi regulamentado: o representante dos funcionários nas empresas.

Na proposta do governo Michel Temer, ele aparece na forma de uma comissão, que tem o mesmo propósito explicitado na Carta Magna, o de "promover o entendimento direto com os empregadores".

Como ela funcionaria?

Segundo o texto que será votado nesta terça-feira, a comissão seria eleita nas empresas com mais de duzentos funcionários e poderia ter de três a sete membros, de acordo com o tamanho da equipe.

Os participantes deveriam encaminhar reivindicações de seus colegas aos superiores e buscar soluções para conflitos no ambiente de trabalho, além de acompanhar o cumprimento das leis e acordos coletivos. Portanto, seria possível ir até eles com reclamações e pedidos.

Ainda de acordo com o projeto, os integrantes da comissão continuariam trabalhando durante seu mandato anual e não poderiam ser demitidos "arbitrariamente" até um ano depois de deixar a função.

No processo de escolha, diz o documento, estaria vedada a interferência da empresa ou do sindicato da categoria.

Apesar de a relação com os patrões estar bem clara no documento, não há menção sobre a interação com as forças sindicais. Isso leva parte dos entrevistados pela BBC Brasil a crer que as comissões poderiam competir com os sindicatos e até substituí-los no futuro.

"Imagino que haverá pressão dos empresários para que a comissão tenha o mesmo poder do sindicato", diz Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

"Ela não terá participação sindical, mas pode apresentar pautas para a empresa. Como a lei não impede essa alternativa (de fazer acordos), é possível que esse seja o próximo passo", acrescenta.

O professor de direito trabalhista da FGV Jorge Boucinhas Filho concorda. Ele acredita que os representantes vão absorver funções hoje exclusivas aos sindicatos. Mas ainda não sabe em que medida.

"Não sabemos a dimensão do que os representantes farão. Eles podem até facilitar a função sindical, usando a proximidade com a empresa para dar informações, comunicar o sindicato. Mas se a comissão começar a fazer tratativas, negociações, pode ser que os sindicatos se tornem algo burocrático, só para constar no fechamento de acordos".

Caso a proposta seja aprovada, Boucinhas diz que a interação entre os atores deve ficar mais clara na regulamentação da lei.

Já a visão do economista e professor da FEA-USP Helio Zylberstajn é de que as regras definam esses grupo como uma ponte entre funcionários, sindicatos e empregadores.

"Você poderá ir até o representante, que vai ter mais acesso ao sindicato. Ele vai chegar no sindicato e dizer que há uma demanda dos funcionários, como parcelamento das férias, por exemplo. Aí farão um acordo para parcelarem as férias de forma coletiva ", diz.

"O sindicato existe para equilibrar essa relação. O trabalhador sozinho é muito mais fraco do que a empresa", acrescenta.

Uma preocupação de Zylberstajn é o processo de eleição dos representantes, descrito brevemente no texto. Parte dos professores ouvidos pela reportagem teme que a comissão seja escolhida por ser próxima à chefia ou ceda às vontades dos superiores por medo de ser demitida.

Em um cenário de desemprego alto, o professor de sociologia do trabalho na Unicamp Ricardo Antunes considera essas hipóteses viáveis.

"Eles serão escolhidos pelos trabalhadores, mas não têm o respaldo sindical nem estabilidade. Se não fizerem bem suas atividades, pelo menos do ponto de vista da empresa, correrão o risco de não trabalhar mais ali."

Já Boucinhas vê nessa discussão uma antecipação do problema e acredita que as consequências dependem muito de cada ambiente profissional.

"A empresa pode tornar a comissão mais parcial, mas a comissão também pode tornar a empresa mais consciente do que está acontecendo no dia a dia".

Como ficarão os sindicatos?

A aprovação da reforma trabalhista no Senado significa também o fim da contribuição obrigatória para os sindicatos. Hoje, independentemente de serem sindicalizados, todos os trabalhadores que integram determinada categoria contribuem para essas organizações.

No caso dos contratados, é descontado um dia de salário do mês de março de cada ano. Para não pagar, é preciso fazer uma carta de oposição.

No ano passado, entidades de classe de patrões e empregados, incluindo federações e confederações, arrecadaram R$ 3,5 bilhões com a contribuição obrigatória. Os números são do Ministério do Trabalho.

Sem esses recursos e com novas responsabilidades - como a de negociar mais tópicos com as empresas-, os sindicatos devem sofrer um baque e se tornar menos presentes na vida dos brasileiros, apostam os entrevistados.

"Que isso vai gerar um enfraquecimento é certo, porque vão perder receita. Os dados que representam o resultado de todos os sindicatos são na casa de bilhões, e a cobrança era antidemocrática. O problema é que vão fazer essa mudança ao mesmo tempo em que exigem novas responsabilidades", diz Jorge Boucinhas, da FGV.

Para o professor, com pouco dinheiro, é provável que os movimentos sucubam às vontades patronais a fim de ganhar remuneração por meio de acordos e convenções coletivas - a chamada contribuição assistencial.

"Eles vão correr atrás de outras formas de se manter."

Reformas para tornar os sindicatos mais representativos e transparentes seriam mais adequadas, pondera o diretor técnico do Dieese. Ele menciona que discussões sobre o assunto vêm acontecendo há anos e foram temas de Proposta de Emenda Constitucional (PECs) que não avançaram.

"Uma transformação séria consideraria medidas que aumentassem a representatividade, que exigissem a prestação de contas, a necessidade de uma eleição democrática, com maior participação dos trabalhadores. Isso, sim, seria uma modernização do que foi pensando nos anos 1940".

A questão da representatividade é chave para o futuro dos sindicatos, já que eles dependerão das contribuições voluntárias.

Simpáticos ao fim da contribuição, Fernando Peluso, do Insper, e o professor Helio Zylberstajn, da USP, preveem que os sindicatos continuarão atuantes porque a Constituição ainda exige sua mediação nas negociações.

Para Peluso, se uma entidade cumprir seu papel de defender os interesses dos trabalhadores, ela continuará recebendo aportes da mesma forma. Cita categorias como metalúrgicos e bancários, que têm presença forte na luta por direitos.

"É o que existe no sistema moderno mundo afora: o sindicato vai arrecadar por escolha do próprio trabalhador. Se ele briga por meus interesses, tenho vontade de ajudá-lo. Se não me representa, porque vou apoiá-lo financeiramente?", questiona.

Peluso argumenta que a obrigação de contribuir era "perversa" e jogava todas as organizações em uma "vala comum", onde quem atuava para proteger os trabalhadores ganhava a mesma coisa que quem não agia.

"Muitos têm sustentado que o sistema vai acabar, mas isso é trabalho de futurologia. A partir de agora, ou o sindicato vai agir ou dificilmente vai ter recursos".