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Justiça garante vaga a candidato à Marinha barrado por ter tatuagem: outros editais violam decisão do STF

João Pedro Gomes da Silva foi barrado em concurso da Marinha por ter tatuagem no braço - Arquivo pessoal
João Pedro Gomes da Silva foi barrado em concurso da Marinha por ter tatuagem no braço Imagem: Arquivo pessoal

Nathalia Passarinho

Da BBC Brasil em Londres

17/11/2017 16h32

A Justiça Federal derrubou na quinta-feira (16) decisão da Marinha de desclassificar um candidato a fuzileiro naval por ter uma tatuagem.

João Pedro Gomes da Silva, de 20 anos, passou em todas as etapas do concurso de 2017, inclusive no exame médico. Mas, enquanto esperava a confirmação sobre a posse, recebeu a informação de que os examinadores tinham voltado atrás na avaliação --decidiram desqualificá-lo por ter um lobo tatuado no antebraço.

Na última terça, a BBC Brasil revelou que concursos públicos para a Marinha, bombeiros e polícias militares de mais de dez Estados continuam a barrar candidatos por terem tatuagem, contrariando decisão de 2016 do STF (Supremo Tribunal Federal).

Segundo o STF, tatuagens não podem ser motivo para vetos em concursos, a não ser que contenham mensageNs que violem valores constitucionais ou incitem à violência. E a decisão teve reconhecida a sua "repercussão geral", ou seja, deve valer para todos os processos semelhantes em tramitação no país.

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Silva recorreu da decisão no dia 3 de novembro, justamente citando a decisão do Supremo. O juiz João Carlos Mayer Soares, da 17ª Vara da Justiça Federal do DF, acolheu o argumento de que é discriminatório desqualificar um candidato só por ter tatuagem.

"Hoje em dia muita gente tem tatuagem. Esse não pode ser um critério de admissão, principalmente quando se trata de concurso público, quando o que está em jogo é meritocracia. Uma pessoa que passou em todas as provas não poderia ser vetada só por ter tatuagem", disse à BBC Brasil a advogada Daniela Tamanini, autora da ação contra a desclassificação de Silva.

O que dizia o edital da Marinha?

O último edital para o curso de fuzileiros navais, publicado em fevereiro deste ano, vetava qualquer tatuagem que não ficasse oculta sob o uniforme de treinamento. Dois candidatos foram barrados por possuírem tatuagens visíveis, um deles era João Pedro Gomes da Silva.

Questionada no início da semana pela BBC Brasil se a decisão não estaria em desacordo com a posição do Supremo, a Marinha argumentou que tatuagens aparentes violam "os princípios constitucionais da hierarquia e disciplina" e que estes princípios são a "base institucional das Forças Armadas".

O Exército e a Aeronáutica disseram que só vetam tatuagens ofensivas ou com mensagens que violem a legislação.

Polícias militares

Ter tatuagem também continua sendo fator impeditivo para integrar as polícias militares de diversos Estados, apesar da decisão do STF. Editais de 2016 e 2017 de cinco Estados (Acre, Goiás, Paraná, Amapá e Pará) fazem restrições a tatuagens visíveis.

Paraná - Reprodução - Reprodução
Edital para concurso da PM do Paraná diz que será considerado inapto o candidato 'portador de tatuagem em áreas visíveis, que não esteja protegida pelo uniforme de treinamento físico (composto por camiseta meia manga, calção, meias curtas e calçado esportivo) e seja contrária à estética militar'
Imagem: Reprodução

Edital de 2 de março deste ano para soldado da PM do Acre, por exemplo, classifica como "condição incapacitante" a existência de "tatuagens em extensas áreas do corpo de forma que fiquem expostas ao público quando do uso de uniformes militares de qualquer modalidade".

Em edital de julho de 2017, a PM do Amapá impede a admissão de candidatos que apresentem, "quando em uso dos diversos uniformes, tatuagem visível que, por seu significado, seja incompatível com o exercício da atividade militar".

Já a PM de Goiás, em documento de setembro do ano passado, cita a existência de tatuagens, de forma genérica, no anexo que elenca "alterações incapacitantes e fatores de contraindicação para admissão".

Para a PM do Paraná, em edital de 2017, a existência de tatuagem contraria a "estética militar": "Será considerado inapto o candidato portador de tatuagem em áreas visíveis, que não esteja protegida pelo uniforme de treinamento físico (composto por camiseta meia manga, calção, meias curtas e calçado esportivo) e seja contrária à estética militar."

'Moral' e 'bons costumes'

Outra restrição aparentemente comum nos editais lançados após a decisão do STF é a tatuagens que contrariem "a moral e os bons costumes", ou que "remetam a atos libidinosos".

A vedação aparece nos concursos para as polícias militares de seis Estados: Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Piauí, Maranhão e Ceará.

O edital de dezembro de 2016 para soldado da PM do Rio de Janeiro, por exemplo, tenta evitar tatuagens "atentatórias à moral e aos bons costumes". O concurso para PM do Rio Grande do Sul barra as que "expressem ideias ou atos libidinosos", enquanto a PM do Ceará fala em "decoro".

Para o advogado Vicente de Paulo Massaro, autor da ação que resultou na decisão do STF de impedir vetos a tatuagens, restrições baseadas em "decoro" e moral abrem caminho para decisões subjetivas nos processos seletivos de candidatos.

"No concurso público, não pode haver cláusula de caráter subjetivo, que dependa da pessoa que está avaliando. Alguém pode avaliar a tatuagem de uma flor e interpretar que se parece com o órgão sexual feminino. O resultado do concurso não pode depender da opinião ou forma de interpretar de uma pessoa", avalia.

No julgamento do STF sobre tatuagens, o Ministério Público Federal defendeu que "moral e bons costumes" não podem ser usados para barrar candidatos.

"O fato de um candidato possuir, na pele, marca ou sinal gravado mediante processo de pigmentação definitivo não inviabiliza nem dificulta minimamente o desempenho de qualquer tipo de função, pública ou privada, manual ou intelectual, de modo a incidir, na hipótese, a vedação expressa no artigo 3º da Constituição Federal", disse a Procuradoria-Geral da República.

"Pensar contrariamente seria o mesmo que admitir que uma mancha ou sinal geneticamente adquirido poderia impedir alguém de seguir a carreira militar. O que poderia ocorrer, em tese, seria a inadequação do candidato cuja tatuagem implicasse ofensa à lei e não aos 'bons costumes' ou à moral."

Bombeiros

Editais de concursos para bombeiros também desafiam a decisão do STF, conforme o levantamento da BBC Brasil. Os editais para bombeiros do Paraná e da Paraíba proíbem tatuagens que contrariem a "estética" militar, sem definir quais seriam esses padrões.

O último concurso para bombeiro do Distrito Federal vedou tatuagens no rosto ou as que, de alguma forma, violem o "padrão de apresentação militar".

Edital - Reprodução - Reprodução
Já no Rio Grande do Sul e no Rio Grande do Norte, além das restrições a tatuagens ofensivas, editais lançados em 2017 também vetam imagens que "atentem contra a moral" ou "aludam a ato libidinoso"
Imagem: Reprodução

De forma genérica, o edital dos bombeiros de Pernambuco menciona como fator de exclusão do concurso tatuagens que possam "comprometer ou prejudicar" o exercício da atividade de bombeiro.

O concurso deste ano do Piauí para o Corpo de Bombeiros veta qualquer tipo de tatuagem aparente.

Já no Rio Grande do Sul e no Rio Grande do Norte, além das restrições a tatuagens ofensivas, também são vetadas, em editais lançados em 2017, imagens que "atentem contra a moral" ou "aludam a ato libidinoso".

No caso do concurso para bombeiro do Rio Grande do Norte, o texto deixa margem para veto até a tatuagens "discretas" e sem conteúdo ofensivo que apareçam com uso do uniforme.

O que pode fazer quem vai barrado por ter tatuagem?

Assim como fez o candidato a fuzileiro naval vetado por ter tatuagem, outros candidatos que se sentirem prejudicados podem entrar com ações na Justiça. Além disso, os editais que contradizem a decisão do STF podem vir a ser questionados pelo Ministério Público dos Estados onde o concurso ocorreu ou ocorrerá.

"Eu vejo que estão desafiando uma decisão da mais alta corte do país, que é o Supremo. Aquela decisão tem abrangência nacional. Eles não podem desrespeitar por motivo algum. Qualquer candidato que for barrado pode questionar isso, ele tem uma decisão que não pode voltar a ser julgada de forma diferente", afirma Massaro.

É o que aconteceu recentemente no concurso para a Polícia Militar de São Paulo. Edital de novembro de 2016 vedava tatuagem que fosse "visível na hipótese do uso de uniforme que comporte camisa de manga curta e bermuda".

O Ministério Público do Estado de São Paulo entrou, então, com uma ação na 10ª Vara de Fazenda Pública de SP questionando este trecho do edital. Com base na decisão do STF, a juíza Sabrina Martino Soares determinou que fosse anulada a cláusula do concurso que restringia tatuagens visíveis.

Existem restrições a tatuagens nas forças armadas no resto do mundo?

As regras sobre tatuagens em serviços policiais ou nas Forças Armadas variam em cada país.

A Marinha britânica, uma das mais tradicionais do mundo, flexibilizou, no ano passado, a regra para o recrutamento de candidatos tatuados: passou a permitir imagens gravadas atrás das orelhas, nos braços e até no pescoço.

O objetivo foi garantir a adesão de jovens ao corpo de fuzileiros. Pelas novas regras, são permitidas múltiplas tatuagens, inclusive de tamanho grande, nos antebraços, pulsos, joelhos e mãos, autorizando, assim, tatuagens visíveis nos uniformes de treinamento.

Desde março de 2016, a Marinha dos Estados Unidos também permite tatuagens visíveis. Os marinheiros podem ter uma tatuagem no pescoço e quantas quiserem nas pernas e braços.

Só são vetadas imagens "racistas, sexistas, extremistas, indecentes, preconceituosas ou que atentem contra a instituição". Já as Forças Armadas de Portugal e Alemanha impõem restrições a tatuagens visíveis.