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'Estoquem comida, abasteçam seus carros': notícias falsas alimentam pânico em meio à greve de caminhoneiros

Leticia Mori e Paula Adamo Idoeta - Da BBC Brasil em São Paulo

24/05/2018 18h26

Os quatro dias consecutivos de greve de caminhoneiros não apenas dominaram a pauta do governo em Brasília, mas também provocaram uma corrida aos postos de gasolina e temores de desabastecimento em supermercados.

A crise é terreno fértil, ainda, para boataria e notícias falsas difundidas por redes sociais e aplicativos de mensagens. No WhatsApp, gravações de áudio que circulam em grupos já sugerem às pessoas que "se previnam".

"Olá, pessoal, aqui quem fala é o presidente do Sindicato dos Caminhoneiros do Brasil. Quero falar para vocês se prevenirem, avisem suas famílias, vão no mercado, comprem comida, abasteçam seus carros, se previnam. Vai trancar tudo. (...) A guerra está começando. Greve já", diz uma gravação que tem circulado pelo aplicativo de mensagens.

Trata-se de uma notícia falsa: não existe um "Sindicato dos Caminhoneiros do Brasil" e, embora a greve de fato afete momentaneamente a distribuição de combustível e produtos, não há, segundo especialistas ouvidos pela BBC Brasil, a menor necessidade de estocar alimentos para o longo prazo, como para semanas ou para mais de um mês.

"É impensável pensar num prazo desses no Brasil", diz Maurício Lima, sócio-diretor da consultoria Ilos, especializada em logística e distribuição. Segundo ele, o fornecimento em grandes cidades como São Paulo tende a se normalizar muito rapidamente depois da greve.

Hoje, a distribuição de alimentos nas cidades funciona com as próprias empresas de varejo tendo seus centros de distribuição regionais, que fazem a entrega para as lojas com frequência diária ou semanal.

"O estoque não fica mais na loja. Então, uma falta de combustível pode gerar uma certa escassez momentânea, mas assim que a greve acabar, o retorno dos produtos às gôndolas também é imediato, porque não depende da indústria. O estoque já está lá", explica Lima.

O fornecimento de perecíveis é um pouco mais afetado e pode gerar alguns prejuízos, mas nada que prejudique a distribuição no longo prazo e justifique a montagem de um estoque em casa.

E uma corrida a supermercados e postos de gasolina acaba, inadvertidamente, piorando a situação dos próprios consumidores: infla os preços e piora a escassez, segundo Otto Nogami, professor de economia do Insper.

"As pessoas têm uma capacidade de se contagiar muito fácil e muito grande, gerando uma ansiedade e um medo que não correspondem ao problema real", diz ele.

'Profecia autorrealizável'

"É uma profecia autorrealizável. Se todo mundo quiser fazer uma estoque em casa com medo de falta de produtos, vai provocar uma escassez que normalmente não haveria", afirma Lima.

Se muitas pessoas correm a um supermercado ao mesmo tempo, é maior a chance de um desabastecimento realmente acontecer, assim como a corrida desenfreada a um banco por temor de ele quebrar pode fazer com que o banco de fato quebre, porque não haverá dinheiro suficiente para suprir a demanda "surpresa".

É o que economistas chamam de "a tragédia dos comuns". Nas circunstâncias em que todos compartilhamos dos mesmos recursos, pessoas agindo racionalmente em interesse próprio acabam tendo um comportamento coletivo irracional e que prejudica a todos - esgotando os recursos comuns.

"A ameaça de um furacão nos EUA também leva as pessoas a correrem aos supermercados. Chamamos isso de 'prova social'", diz à BBC Brasil o economista Robson Gonçalves, coordenador do curso de Neurobusiness da FGV-SP.

"Se você passar na rua e vir todo o mundo olhando para o céu, fará o mesmo, com medo de perder algo. Se todo mundo no seu trabalho participar do bolão da loteria, você participará também, com medo de ficar de fora. É um comportamento comum em momentos críticos."

Esse "medo de ficar de fora" também é um dos fenômenos que explicam as bolhas econômicas: muitas pessoas embarcam em uma tendência de compra de ações sem avaliar os riscos, só porque os colegas estão comprando, o que acaba gerando uma supervalorização de um ativo que não tem tanto valor e causando a bolha.

É o mesmo movimento que explica a queda de 14% nas ações da Petrobras de quarta para quinta-feira, segundo Otto Nogami, do Insper.

"Não haveria razão para um queda tão significativa. À medida que a Petrobras admite que vai reduzir os preços e fica a impressão de que o governo vai interferir na estatal, algumas pessoas são levadas a vender os papéis. Quando várias pessoas começam a seguir essa tendência, há um efeito cascata", diz Nogami.

Prejuízo

Além disso, reações de consumo impulsivas e irracionais podem por vezes beneficiar mais o vendedor do que o comprador.

"Quando você vai comprar uma passagem aérea na internet e lê que 'só há mais duas passagens disponíveis para esse voo', desperta em si um processo de medo e defesa (que a faz comprar)", prossegue Gonçalves.

Esse é outro ponto a se pensar antes de correr a postos e mercados: vendedores com frequência se aproveitam disso para vender mais e mais caro, sabendo que a demanda irracional pagará o que for pedido.

Ao estocar um produto em alta de preços nesse momento de pânico, o consumidor pode pagar mais caro por algo que dali a alguns dias já teria uma distribuição regularizada e um preço normal.

Ações irracionais e seus impactos no comportamento socioeconômico das pessoas são há tempos estudadas pelos economistas e psicólogos.

O psicólogo israelo-americano Daniel Kahneman, por exemplo, ganhou o prêmio Nobel de Economia de 2002 por seus estudos mostrando que tomamos decisões com base em um processamento limitado das informações disponíveis, por conta de vieses cognitivos, incluindo nosso interesse próprio, confiança excessiva ou experiências prévias, além da incapacidade do cérebro em lidar com múltiplas variáveis ao mesmo tempo.

Como reagir?

Mas, então, como responder de modo mais eficiente a crises como a greve atual?

Pessoas que tenham urgência para viajar ou precisem de um determinado insumo podem não ter como escapar de determinadas filas nos postos ou preços elevados.

Mas, ao público geral, a recomendação de Gonçalves, da FGV-SP, é justamente racionalizar em momentos críticos - e priorizar. Ao enfrentar uma escassez momentânea, pensar em quais produtos essenciais podem acabar em sua casa no curto prazo, mas evitando fazer estoques desnecessários.

"Com falta eventual de determinado produto, buscar um substituto", diz Nogami, do Insper.

"Em um mundo com excesso de opções de consumo, não estamos mais acostumados a priorizar", diz Gonçalves. "Mas podemos aproveitar momentos como este para refletir: o que é realmente prioridade e quais as consequências de nossas escolhas? O foco nessas horas vai ajudar a tornar as decisões mais racionais."

Mauricio Lima afirma que, mesmo que a greve continue, as empresas serão forçadas a buscar uma solução. "Nem que seja pressionando por um acordo entre os grevistas e o governo."