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Por que surpreende que agora Maduro aprove uso do dólar na Venezuela

Nicolás Maduro - YURI CORTEZ / AFP
Nicolás Maduro Imagem: YURI CORTEZ / AFP

Guillermo D. Olmo (@BBCgolmo) - Correspondente da BBC News Mundo na Venezuela

19/11/2019 12h08

É a moeda do "império", como a retórica chavista costuma se referir aos Estados Unidos, mas Nicolás Maduro agora acredita nela.

O presidente da Venezuela defendeu em entrevista no domingo o crescente papel que o dólar desempenha na economia do país, como uma "válvula de escape" diante da crise - declaração que contrasta com o discurso adotado há anos pelo seu governo.

O país enfrenta uma grave crise econômica. Segundo estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Produto Interno Bruto (PIB) foi reduzido em mais da metade desde 2013, ano em que Maduro chegou ao poder. E a hiperinflação, que, segundo o Banco Central da Venezuela, encerrou 2018 acima de 130.000%, faz com que a moeda nacional, o bolívar, perca constantemente seu valor, o que incentiva cada vez mais o uso do dólar.

Um relatório recente da consultoria Ecoanalítica estima que as transações em dólar já representam mais de 53% do total. Em Maracaibo, uma das cidades mais importantes do país, correspondem a 86%.

A declaração de Maduro

Em entrevista concedida a José Vicente Rangel, ex-vice-presidente de Hugo Chávez, transmitida pelo canal Televen, Maduro se referiu à crescente dolarização.

"Não vejo como algo ruim (...) esse processo que eles chamam de dolarização; pode ajudar na recuperação e desenvolvimento das forças produtivas do país e no funcionamento da economia (...) graças a Deus que ele existe", afirmou presidente.

Ele garantiu, no entanto, que "a Venezuela sempre terá sua moeda (...) vamos ter sempre o bolívar, vamos recuperá-lo e vamos defendê-lo".

O líder da oposição Juan Guaidó, reconhecido como presidente interino da Venezuela pelos Estados Unidos e pela maioria dos países da América Latina e da União Europeia, atacou Maduro depois de ouvir suas palavras:

"O fracassado de Miraflores reconhece hoje que o país está dolarizado."

O que Maduro dizia antes

O fato de Maduro ter aprovado publicamente o uso do dólar pegou muita gente de surpresa.

Na campanha às eleições presidenciais de 2018, ele criticou a proposta de dolarizar o país do adversário Henri Falcón.

"Ele não sabe o que diz", afirmou Maduro, acrescentando que "a proposta de dolarizar e acabar com a moeda venezuelana era uma proposta inconstitucional".

Em fevereiro de 2018, quando Maduro anunciou o lançamento do petro, a moeda virtual com a qual esperava estimular a economia venezuelana, ele e outros membros do governo repetiram que tinham como garantia as reservas de petróleo da Venezuela, uma vantagem sobre o dólar, cujo valor é estritamente fiduciário.

E em agosto deste ano, Diosdado Cabello, presidente da Assembleia Nacional Constituinte pró-governo, considerado um dos líderes mais importantes do chavismo, se mostrou a favor de "obrigar que as transações sejam feitas em bolívar ou por meio de escambo", como forma de "fortalecer o bolívar".

A oposição ao dólar não se restringiu a declarações.

Henkel García, analista da consultoria Econométrica, afirmou à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, que "o governo fez tudo o que pôde para impedir a dolarização e chegou, inclusive, a perseguir aqueles que publicavam o valor da taxa de câmbio no mercado paralelo."

O economista Francisco Rodríguez, um dos responsáveis pela elaboração do programa econômico do candidato Falcón, avalia: "O custo para o nosso país da improvisação e da irresponsabilidade daqueles que hoje detêm o poder é incalculável."

O que fez Maduro mudar de ideia

Nos últimos meses, pressionado pela grave situação econômica e pelo impacto das sanções impostas pelos Estados Unidos, o governo Maduro vem afrouxando muitos dos controles que há anos restringem a atividade econômica na Venezuela.

Apesar da retórica anticapitalista de seu governo "revolucionário", economistas como Asdrúbal Oliveros, da consultoria Ecoanalítica, acreditam que Maduro "está aplicando um plano de ajuste, embora não admita".

Muitas vezes sem anunciar publicamente, as autoridades abandonaram práticas que eram uma das marcas registradas desde a gestão de Hugo Chávez, como o controle de preços e de câmbio, que, segundo Henkel García, "permitiram um maior dinamismo na economia ".

Ao permitir a entrada do dólar e oferecer maior liberdade aos agentes econômicos, "Maduro ganhou algum tempo e aliviou a pressão social à qual foi submetido", avalia Henkel García.

Para o especialista, esse "novo pragmatismo" responde a uma "estratégia de sobrevivência política".

Ingerzon Freites, professor de economia da Universidade Central da Venezuela, concorda parcialmente com o novo rumo que o governo parece ter adotado.

"O atual grau de dolarização é efetivamente uma válvula de escape para a crise que o país está enfrentando, portanto, na atual conjuntura e no curto prazo, pode ser viável", afirmou.

Para García, "sem o dólar, a economia estaria ainda pior, mas o governo não fez nada além de reconhecer algo que vinha acontecendo e não conseguia frear".

O dólar vai ser a nova moeda da Venezuela?

García ressalta que "a experiência mostra que os processos de dolarização são irreversíveis no curto prazo, e as palavras de Maduro vão incentivar ainda mais o uso da moeda no caso de quem ainda estava na dúvida".

A Venezuela não é o primeiro país da América Latina a recorrer ao dólar para conter a inflação e estabilizar a economia. Outros já fizeram isso antes, como Equador, Peru e Bolívia.

Mas, na Venezuela, o processo não está legalmente regulamentado - a sociedade que está se agarrando espontaneamente ao dólar sem que haja um marco jurídico claro, o que, segundo especialistas, pode ser problemático.

O economista Francisco Rodríguez diz que "uma dolarização de verdade permitiria que todos os venezuelanos recebessem salários e fizessem depósitos bancários em dólar".

A impossibilidade de depositar dólar no sistema bancário favorece uma economia em que são manuseadas grandes quantias de dinheiro em espécie, o que, segundo Luis Vicente León, da consultoria Datanálisis, "é o ambiente ideal para um traficante de drogas, que pode entrar no sistema sem chamar atenção ".

Os grandes perdedores no atual cenário, argumenta Rodríguez, "são aqueles que ganham em bolívar": a maioria da população, segundo estudos, incluindo funcionários públicos, cujos salários não acompanham a alta dos preços.

Embora Maduro tenha lembrado que aqueles que recebem seus rendimentos na moeda local "são salvos pela pátria", graças ao sistema de bônus e assistência implementado pelos governos chavistas.

Os especialistas pedem que a dolarização seja plena e legalmente estabelecida, mas alguns duvidam que isso seja possível sob o atual regime de sanções impostas pelos EUA, já que, como diz García, "uma vez que o governo está sob sanção, isso impede um processo formal de dolarização".

O analista diz que o dólar "deu oxigênio à economia", mas não será suficiente para acabar com a crise na Venezuela.

"Para isso é necessário resolver o problema da dívida e voltar a atrair grandes investimentos", desafios pendentes para um país que testemunhou nos últimos anos a saída de mais de 4 milhões de pessoas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), que partiram em busca de oportunidades que não encontravam mais ali.