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Salário inicial de R$ 19 mil põe elite dos servidores entre 2% mais ricos no Brasil

O ministro da Economia, Paulo Guedes, quer reduzir salários iniciais de servidores com alta remuneração - Reuters
O ministro da Economia, Paulo Guedes, quer reduzir salários iniciais de servidores com alta remuneração Imagem: Reuters

Mariana Schreiber

Da BBC News Brasil em Brasília

04/12/2019 08h36

"Você tem alto salários, estabilidade. Você vive em Brasília, é outro planeta. É Versalhes", disse o ministro da Economia, Paulo Guedes, no início de setembro, comparando as condições de trabalho dos servidores públicos federais à opulência da corte real francesa que ocupava o Palácio de Versalhes antes da derrubada da monarquia em 1789.

Sob o argumento de que o funcionalismo, em especial o da União, é caro e privilegiado, o governo de Jair Bolsonaro quer enviar ao Congresso no início de 2020 uma reforma administrativa para reformular as carreiras públicas, projeto que vem sendo chamado também de novo RH do Estado. Os gastos com pessoal ativo - que devem fechar o ano acima de R$ 300 bilhões ? é o terceiro maior da União, atrás de Previdência Social e juros da dívida pública.

Guedes tem um importante aliado nessa empreitada: o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, é antigo defensor da pauta. Ambos consideram que os servidores - com destaque para carreiras exclusivas de Estado como gestão tributária, Justiça, diplomacia - já começam ganhando alto para padrões brasileiros e progridem rapidamente para o teto de remuneração de cada categoria.

Nesse sentido, eles querem uma reforma que reduza os salários iniciais, torne mais gradativa a evolução na carreira e atrele a progressão a avaliações de desempenho. Também defendem flexibilizar as regras de estabilidade para facilitar a demissão em casos de baixa produtividade - essa última proposta sofre críticas inclusive de economistas liberais que consideram o mecanismo uma defesa contra perseguição política.

No Poder Executivo, algumas das carreiras que se destacam pela elevada remuneração paga aos recém-concursados são as de delegado da Polícia Federal (R$ 23.692,74), auditor-fiscal da Receita Federal (R$ 21.029,09), advogado da União (R$ 21.014,49), diplomata (R$ 19.199,06) e analista do Banco Central ou de Planejamento e Orçamento (R$ 19.197,06). São valores que colocam esses servidores entre os brasileiros mais ricos, no instante que ingressam na carreira.

De acordo com a Oxfam, organização internacional que atua na redução de desigualdades, trabalhadores com salário mensal a partir de R$ 15 mil já estão entre os 2% de maior renda no país, quando consideradas pessoas de mais de 18 anos que possuam alguma fonte de recursos. Já uma remuneração a partir de R$ 23 mil coloca o indivíduo entre o 1% mais rico.

Esses dados foram extraídos, a pedido da BBC News Brasil, de uma calculadora criada pela Oxfam com dados oficiais do IBGE e da Receita Federal para evidenciar a diferença de renda e do peso dos impostos sobre diferentes extratos sociais no país.

Para Rodrigo Maia, os ganhos iniciais altos e a rápida progressão permitida em algumas carreiras reduzem o "estímulo" para que o servidor público se esforce mais.

"Tem uma cúpula (de servidores) dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) que começa já ganhando perto do teto (do funcionalismo, hoje em R$ 39 mil). Então, eu pergunto: não é correto, em vez de a pessoa começar ganhando R$ 25 mil, ela começar ganhando R$ 12 mil, R$ 15 mil, que para o Brasil já é uma grande salário?", questionou Maia, em entrevista em outubro ao programa Poder em Foco, do SBT.

Elite dos servidores começa ganhando mais que profissionais com doutorado

Os salários pagos à elite do Poder Executivo não estão apenas muito acima da renda per capita do país (R$ 1.373, segundo o IBGE), mas superam também largamente a de pessoas altamente escolarizadas. De acordo com o Relatório Anual de Informações Sociais (Rais) do Ministério da Economia, a remuneração média de profissionais com doutorado no Brasil, seja no setor privado ou público, estava em R$ 12.141 em dezembro de 2018.

Mas há salários iniciais ainda mais altos nos Poderes Judiciário e Legislativo. A remuneração mais baixa oferecida hoje para juízes federais no Brasil é de R$ 32 mil, mesmo patamar oferecido pelo Senado Federal como salário de entrada para o cargo de consultor legislativo.

O economista Nelson Marconi, professor nos cursos de Administração Pública e Governo da FGV-SP, atribui os altos salários da elite do funcionalismo a dois fatores: capacidade maior de pressão sobre o governo e o Congresso e a proximidade do processo decisório.

"Legislativo e Judiciário sempre tiveram mais liberdade para reajustar que Executivo, pois têm um número menor pessoas, então o impacto fiscal não é tão grande. Eles acabam conseguindo reajuste e aí, na sequência, as categorias mais fortes do Executivo, como Polícia Federal e Receita, pressionam também para não ficar muito atrás", ressalta.

"E há a proximidade de vários servidores do processo decisório (do governo). Você está negociando com seus pares. É uma relação diferente do setor privado, em que há o patrão e o trabalhador. Quem no setor privado ganha R$ 19 mil no início da carreira?", compara.

No entanto, o Ministério da Economia não esclareceu se a reforma atingirá apenas os servidores da União, ao ser questionado pela BBC News Brasil. Apenas o STF e o Congresso podem dar início a projetos de lei que alterem as carreiras dos servidores do Judiciário e do Legislativo, respectivamente. No entanto, o governo tem sinalizado com o envio de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) - nesse caso, a reforma poderia atingir funcionários de todos os Poderes.

Resistência e críticas à reforma

Na tentativa de reduzir resistências dentro do funcionalismo e questionamentos jurídicos sobre direitos já adquiridos, o governo tem dito que as mudanças valerão apenas para servidores contratados após a reforma. Ainda assim, a proposta vem sofrendo grande oposição dentro do funcionalismo e, por isso, seu envio ao Congresso, previsto inicialmente para outubro, foi adiado para o ano que vem.

Líderes de associações de servidores ouvidos pela BBC News Brasil reconheceram que algumas categorias têm salários de partida elevados e que é possível melhorar os sistemas de avaliação de desempenho. No entanto, argumentam que um bom patamar de remuneração é importante para atrair bons quadros para o funcionalismo e temem que a reforma defendida pelo governo precarize o serviço público prestado à população. Eles ressaltam que há pessoas que entram no serviço público já no meio da carreira, tendo experiência profissional e pós-graduação.

No governo anterior, do presidente Michel Temer, a equipe econômica chegou a defender um limite de R$ 5 mil para o salário inicial dos servidores. Segundo estimativa divulgada em outubro pelo Banco Mundial, se fosse adotado esse teto para e também alongado o tempo necessário para se chegar a ganhos mais altos, a União economizaria R$ 104 bilhões até 2030.

No mesmo documento, o Banco Mundial apontou que os os servidores públicos federais brasileiros ganham quase o dobro (96% a mais) do que os trabalhadores do setor privado com mesma escolaridade. A maioria do funcionalismo, porém, trabalha para municípios, onde os salários são similares aos do setor privado, aponta o estudo. Segundo o Ipea, os servidores municipais ganhavam em média R$ 3 mil em 2016.

O documento do Banco Mundial vem sendo citado pela equipe de Paulo Guedes para defender a reforma administrativa. Opositores da proposta do governo, por sua vez, criticam a metodologia usada no estudo argumentando que carreiras típicas de Estado não têm correspondente na iniciativa privada.

"Essa comparação é totalmente descabida. Você vai comparar um diplomata com que trabalhadores da iniciativa privada? Com quem você vai comparar um auditor da Receita Federal? Só ele tem prerrogativas da política tributária", afirma Rudinei Marques, presidente do Fonacate (Fórum Nacional Permanente de Carreiras Típicas de Estado).

"Quem vai gerir R$ 3 trilhões (orçamento do governo federal)? É muito pagar para um servidor desse R$ 15 mil, R$ 16 mil como salário inicial? Acho que não", reforça, em referência à remuneração líquida inicial de carreiras que administram as contas federais.

Para o economista José Celso Cardoso, Presidente da Associação de Funcionários do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a comparação feita pelo Banco Mundial "tenta jogar a população contra os servidores públicos usando uma estatística que é uma tortura de dados". Ele acusa o governo de estar focado apenas em cortar gastos, e não em uma reforma que melhore o serviço público. Embora reconheça que alguns salários iniciais são altos, Cardoso considera arriscado uma redução para R$ 5 mil, por exemplo.

"Se eu jogo o salário de entrada muito embaixo, você vai atrair profissionais menos qualificados, menos estimulados, e o resultado agregado desse movimento vai ser diminuir o custo da folha de pagamento e piorar a qualidade do serviço público. Qual o custo da piora da qualidade do serviço público? Ninguém fez essa conta", ressalta.

"Imagine um fiscal da Receita Federal que trabalhe cobrando empresários. O salário inicial líquido vai dar uns R$ 16 mil. Eu acho alto para o padrão brasileiro. Mas, se for menos, vai reduzir a corrupção? Esse cara vai ser mais ou menos facilmente capturado pelo empresário que quer burlar a fiscalização?", acrescenta.

'São bons profissionais, mas não gênios'

O professor da FGV Direito SP e presidente da Sociedade Brasileira de Direito Público, Carlos Ari Sundfeld, contesta o argumento de que salários de carreiras de Estado não possam ser comparadas com o setor privado. Para ele, a remuneração no serviço público deve ser similar a dos demais trabalhadores com escolaridade parecida.

"Eles (elite do funcionalismo) argumentam que os salários têm que ser extraordinários porque eles são extraordinários, fora do normal. Isso é um delírio. São bons profissionais, mas não se trata de um universo de gênios", crítica.

Sundfeld lembra também que o funcionalismo tem proteção maior em tempos de crise, não estando sujeito a demissões quando o governo enfrenta aperto nas contas, diferentemente do que ocorre em empresas. Dados do IBGE revelam que a crise econômica tem aumentado o fosso salarial - enquanto a renda média no serviço público subiu de R$ 3.483 para R$ 3.693 nos últimos cinco anos, no setor privado caiu de R$ 2.018 para R$ 1.977.

"Não são necessários salários altíssimos para atrair talentos adequados porque o setor público tem outros atrativos: é um trabalho com propósito, oferece estabilidade", diz o professor.

Trabalhador sem diploma ganhando mais que graduados

As carreiras com maiores salários exigem curso superior para participar do concurso. No entanto, uma pesquisa na tabela de remuneração dos servidores federais, disponível no site do Ministério do Planejamento, permite encontrar carreiras de nível intermediário (que não exigem ensino superior) com salários iniciais também bem acima da média nacional.

O piso pago aos técnicos do Banco Central, cujo concurso exige apenas nível de Ensino Médio completo, é de R$ 7.283,31. Já no Ipea, auxiliares administrativos, secretárias e motoristas começam ganhando R$ 6.623,58.

São valores que superam a média da remuneração dos trabalhadores com graduação no país (R$ 6.004, segundo a Rais).

Como exemplo das distorções que existem dentro do próprio funcionalismo, esses salários estão perto ou acima da remuneração inicial de carreiras federais com nível superior, caso do engenheiro agrônomo do Incra (R$ 6.693,80) e do indigenista especializado da Funai (R$ 5.962,87).

Juízes brasileiros recebem mais que europeus

Comparações internacionais também indicam que algumas categorias brasileiras têm salário inicial acima de seus pares em outros países. Um estudo de 2018 da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (Cepej, na sigla em francês) mostra que o salário inicial médio pago a juízes em 48 países (a maioria europeus) era de 50.529 euros anuais (cerca de R$ 236 mil) em 2016.

Naquele ano, o juiz federal brasileiro ganhava no mínimo R$ 27.500 ao mês, além de auxílio moradia de R$ 4.377. Considerando o 13º salário e o adicional equivalente a dois meses de férias aos quais a categoria tem direito, o ganho anual de um magistrado federal era de ao menos R$ 428 mil.

"Nós somos o teto do funcionalismo. E num país com tantos milhões de pessoas desempregadas, e alguns abaixo da linha da pobreza, realmente há um distanciamento", reconheceu ao jornal Folha de S.Paulo a juíza Renata Gil, nova presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros.

"Mas, se pensar que as garantias remuneratórias são garantias do próprio funcionamento do Poder Judiciário, jamais pensaríamos que isso deveria estar em discussão", argumentou em seguida.

Diplomatas brasileiros também não ficam atrás de pares estrangeiros. No Reino Unido, o salário inicial da carreira é de 28 mil libras no ano (o equivalente a quase R$ 153 mil), remuneração que pode chegar a 45 mil libras em cinco anos (quase R$ 246 mil) após promoções. Já o brasileiro que passa no concurso do Itamaraty começa ganhando R$ 19.199,06 mensais, o que dá quase R$ 256 mil ao ano, considerando o 13o salário e o adicional de férias.

Nos Estados Unidos, os salários iniciais variam de acordo com a escolaridade e experiência do recém-contratado. No caso de um diplomata graduado, mas sem ocupações anteriores, a remuneração anual é de US$ 55.272 (cerca de R$ 232 mil). Se ele tiver cinco anos de experiência profissional, ela sobe para US$ 64.075 (quase R$ 269 mil).

À BBC News Brasil, diplomatas argumentaram que a remuneração inicial é compatível com as exigências diferenciadas da carreira - para passar no concurso, é preciso falar inglês, espanhol e francês, por exemplo. Eles disseram também que o salário deve compensar o "ônus familiar" devido à constante mudança de país em que trabalham. Esse ônus, afirmam, inclui o alto custo educacional com os filhos, que precisam estudar em colégios internacionais, e a redução da renda familiar devido às dificuldades para que o marido ou esposa mantenha uma carreira.

Embora o salário oferecido pelo Itamaraty esteja no patamar do oferecido por nações desenvolvidas, eles ressaltam que o pacote de benefícios é inferior a de outros países. Uma das reivindicações da categoria é passar a receber auxílio para custear o ensino dos filhos quando estão no exterior - benefício concedido por Reino Unido e Estados Unidos.