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Covid nos EUA: como a pandemia pode dar ao governo seu maior protagonismo em décadas

"A pandemia permitiu a Biden afirmar que o governo é a solução, e não o problema", explica o cientista político Todd Belt - JONATHAN ERNST/REUTERS
'A pandemia permitiu a Biden afirmar que o governo é a solução, e não o problema', explica o cientista político Todd Belt Imagem: JONATHAN ERNST/REUTERS

Alessandra Corrêa - De Washington (EUA) para a BBC News Brasil

01/05/2021 13h33

Foi há 40 anos, no discurso de posse de seu primeiro mandato, que o então presidente americano Ronald Reagan proferiu a frase que se tornaria mantra dos políticos republicanos nos Estados Unidos nas décadas seguintes: "O governo não é a solução para o nosso problema, o governo é o problema", declarou Reagan em janeiro de 1981.

Quatro décadas depois, em um momento em que o país ainda enfrenta os efeitos da pandemia de covid-19, que já deixou mais de 575 mil mortos e custou milhões de empregos, o presidente democrata Joe Biden aposta que os americanos estão prontos para rejeitar essa ideia e aceitar uma expansão no papel do governo.

Em seu primeiro pronunciamento ao Congresso, em sessão conjunta na quarta-feira (28/4), Biden apresentou detalhes de seu Plano para as Famílias Americanas, um programa de US$ 1,8 trilhão (cerca de R$ 9,7 trilhões) para ampliar o acesso a educação, saúde, assistência a crianças e licença maternidade e paternidade para milhões de pessoas.

O plano seria financiado, em parte, com o aumento de impostos para os mais ricos, e faz parte de uma ambiciosa agenda econômica de trilhões de dólares que deverá representar uma enorme reconfiguração do papel do Estado na vida dos americanos.

No mês passado, o presidente já havia apresentado uma proposta de US$ 2,3 trilhões (cerca de R$ 12,5 trilhões) em investimentos em infraestrutura e empregos. Esses dois planos, que ainda dependem de aprovação do Congresso, somam-se ao pacote de estímulo econômico de US$ 1,9 trilhão (cerca de R$ 10,3 trilhões) para combater o impacto da pandemia, sancionado em março.

"Nós temos de provar que a democracia ainda funciona, que o nosso governo ainda funciona", disse Biden na quarta-feira, em um discurso que marcou os primeiros cem dias de seu governo e foi transmitido em rede nacional.

Se a Era Reagan marcou o início de décadas de repúdio ao que os americanos chamam de "governo grande", com redução do papel do Estado e sucessivos cortes de impostos e de gastos, a pandemia mostrou que o governo pode ter um papel crucial para melhorar a vida da população e tirar o país da recessão.

O cenário começou a mudar ainda no mandato do republicano Donald Trump. No ano passado, no auge da crise, o Congresso aprovou gastos de mais de US$ 3 trilhões (cerca de R$ 16,3 trilhões) em medidas que incluíram cheques enviados à população e bilhões de dólares para ajudar pequenas empresas e negócios.

Essa ajuda foi essencial em um momento que o comércio teve de fechar as portas durante a quarentena e muitos perderam o emprego. Foi também durante o governo Trump que foram iniciados os esforços de desenvolvimento e distribuição de vacinas contra a covid-19.

Vacinação contra covid-19 na Flórida; mais de 200 milhões de doses já foram aplicadas nos EUA - Getty Images - Getty Images
Vacinação contra covid-19 na Flórida; mais de 200 milhões de doses já foram aplicadas nos EUA
Imagem: Getty Images

Desde que assumiu o poder, em 20 de janeiro deste ano, Biden ampliou essas medidas - acelerando o ritmo de vacinação, que agora permite que o país comece a relaxar algumas restrições; e implementando seu pacote de resgate, que incluiu a distribuição de cheques de US$ 1,4 mil (cerca de R$ 7,6 mil) à população.

"A pandemia permitiu a Biden afirmar que o governo é a solução, e não o problema", diz à BBC News Brasil o cientista político Todd Belt, professor da George Washington University, em Washington.

"(Permitiu a ele) dizer que, quando você está recebendo a vacina, quando você recebe um cheque no correio, isso é o governo funcionando. As pessoas estão conseguindo ver resultados diretos da ação do governo", ressalta.

Desigualdades

A pandemia também deixou evidentes as desigualdades econômicas, raciais e de gênero na sociedade americana, que as propostas do governo prometem remediar.

"A crise não afetou a todos de maneira igual. Foi particularmente difícil para mulheres e minorias", salienta Belt.

"Isso abriu a oportunidade para ajudar não apenas a economia, mas também ajudar a reparar essas desigualdades que foram evidenciadas pela pandemia."

Diante da crise econômica e de saúde desencadeada pela covid-19, pesquisas de opinião mostram que a população está mais receptiva à ideia de que o governo deve ter um papel maior e oferecer uma rede de proteção social.

Segundo pesquisa Gallup de setembro do ano passado, 54% dos americanos acham que o governo deveria fazer mais para resolver os problemas do país, um aumento de sete pontos percentuais em relação ao ano anterior.

O novo plano apresentado nesta semana por Biden prevê US$ 1 trilhão (cerca de R$ 5,4 trilhões) em investimentos diretos e US$ 800 bilhões (cerca de R$ 4,3 trilhões) em abatimento de impostos ao longo de 10 anos, que beneficiarão especialmente famílias de baixa e média renda e estenderão alguns dos programas temporários adotados durante a pandemia.

Esses investimentos no combate à pobreza e em programas de bem-estar social colocam os Estados Unidos mais próximos de outras economias avançadas.

A covid-19 evidenciou também as desigualdades no acesso à saúde, em um país onde esse não é um direito universal. A proposta apresentada por Biden mantém subsídios adotados durante a pandemia para ampliar o acesso da população de baixa renda a planos de saúde.

Outro benefício implementado durante a pandemia, que oferece créditos fiscais anuais de até US$ 3,6 mil (cerca de R$ 19,5 mil) por filho para famílias de baixa renda, deverá ser estendido pelo menos até 2025. Também serão investidos US$ 45 bilhões (cerca de R$ 245 bilhões) para combater a insegurança alimentar infantil, e serão estendidos auxílios para que famílias pobres comprem comida.

Fila para recebimento de doação de alimentos em Nova York; pandemia também deixou claras as desigualdades econômicas, raciais e de gênero na sociedade americana - Justin Lane/EPA - Justin Lane/EPA
Fila para recebimento de doação de alimentos em Nova York; pandemia também deixou claras as desigualdades econômicas, raciais e de gênero na sociedade americana
Imagem: Justin Lane/EPA

Estão previstos ainda investimentos de US$ 225 bilhões (cerca de R$ 1,2 trilhão) para garantir 12 semanas de licença maternidade e paternidade remunerada e também de licença médica, que poderá ser usada inclusive para cuidar de familiares doentes.

Nos Estados Unidos, não há lei federal que obrigue empregadores a oferecer licença remunerada. O benefício é garantido em alguns Estados e municípios mas, no restante do país, costuma ficar a cargo do empregador.

Educação

A área de educação é outro dos principais focos do novo pacote.

Serão US$ 200 bilhões (cerca de R$ 1 trilhão) para universalizar o acesso gratuito à pré-escola para crianças de 3 e 4 anos de idade. A medida incluiria crianças de todas as faixas de renda, mas beneficiaria especialmente famílias com filhos pequenos que não têm como arcar com os custos de creches.

Ao longo da pandemia, diversas análises demonstraram que o fechamento de escolas teve impacto negativo desproporcional sobre mulheres no mercado de trabalho. Além disso, estudos indicam que educação infantil de qualidade pode ter um impacto no sucesso profissional futuro.

Professores de pré-escolas e creches teriam o salário aumentado para um mínimo de US$ 15 (cerca de R$ 81,56) por hora (atualmente, a média salarial dessa categoria fica em torno de US$ 12,24 por hora). O plano também inclui investimentos na qualificação de professores.

Outros US$ 109 bilhões (cerca de R$ 592 bilhões) serão destinados para oferecer dois anos de ensino superior gratuito em faculdades comunitárias, que recebem grande número de alunos de baixa renda e de grupos minoritários.

Nos Estados Unidos, essas instituições de ensino costumam ter cursos de dois anos e processo de admissão mais simples do que as universidades, que geralmente oferecem cursos de quatro anos. O plano inclui a participação dos Estados, que contribuiriam com parte dos custos, e poderá beneficiar 5,5 milhões de estudantes.

Em um momento em que ter um diploma de ensino médio não é mais garantia de bom emprego, dados mostram que americanos sem curso superior que perderam o emprego durante a pandemia enfrentam mais dificuldade de se recolocar no mercado de trabalho.

Estão previstos também US$ 39 bilhões (cerca de R$ 212 bilhões) para subsidiar dois anos de ensino superior para estudantes de famílias com renda anual de até US$ 125 mil (cerca de R$ 679 mil) que frequentem universidades dedicadas a alunos negros, indígenas ou de outros grupos minoritários.

O pacote prevê ainda recursos para capacitação de professores e investimento de US$ 85 bilhões (cerca de R$ 462 bilhões) para aumentar o valor das bolsas de estudos oferecidas pelo programa Pell Grants, que beneficia universitários de baixa renda.

Plano do governo Biden prevê US$ 200 bilhões (cerca de R$ 1 trilhão) para universalizar o acesso gratuito à pré-escola para crianças de três e quatro anos de idade - Getty Images - Getty Images
Plano do governo Biden prevê US$ 200 bilhões (cerca de R$ 1 trilhão) para universalizar o acesso gratuito à pré-escola para crianças de três e quatro anos de idade
Imagem: Getty Images

Impostos

O plano seria financiado, em parte, com aumentos nos impostos para os mais ricos e grandes corporações.

A proposta é aumentar a alíquota máxima do imposto de renda de 37% para 39,6%, voltando assim ao patamar em vigor até 2017. A alta afetaria aqueles que ganham mais de US$ 400 mil (cerca de R$ 2,1 milhões) por ano.

Também está previsto aumento do imposto sobre ganhos de capital (pago em ativos como ações, títulos e dividendos) para quem ganha mais de US$ 1 milhão (cerca de R$ 5,4 milhões) por ano. Essa alíquota passaria de 20% para 39,6%.

O governo pretende ainda investir no aumento da capacidade de fiscalização do IRS (Internal Revenue Service, a Receita Federal americana), e calcula que as mudanças devem resultar na arrecadação de US$ 1,5 trilhão (cerca de R$ 8,1 trilhões) nos próximos 10 anos.

"Eu não pretendo punir ninguém. Mas eu não vou adicionar uma carga tributária para a classe média desse país. Eles já pagam o suficiente", disse o presidente em seu pronunciamento.

"Quando você ouvir alguém dizer que não quer aumentar os impostos dos 1% mais ricos ou das corporações, perguntem: 'Os impostos de quem você vai aumentar no lugar deles?'"

Congresso

O presidente buscou ressaltar o efeito que suas propostas terão ao gerar empregos e crescimento econômico.

Eleito como um candidato da ala conservadora de seu partido, Biden tem sido muitas vezes comparado a Franklin Roosevelt, que adotou uma série de reformas na década de 1930, quando o país estava mergulhado na Grande Depressão.

Outros mencionam Lyndon Johnson, o presidente que implementou programas de combate à pobreza e de acesso à saúde nos anos 1960.

Mas, apesar de os programas anunciados por Biden serem populares, seu futuro ainda é incerto e depende da aprovação do Congresso, onde os democratas contam com margem pequena. O partido tem 50 das cem cadeiras no Senado e só mantém a vantagem porque o voto de desempate cabe à vice-presidente, Kamala Harris.

Logo após o discurso de Biden na quarta-feira, os republicanos, que são contra o aumento de impostos, já expressaram suas críticas a uma agenda que consideram "radical", sinal de que será difícil contar com o apoio de parlamentares do partido.

Muitas propostas exigem uma maioria de 60 votos no Senado, mas os democratas podem recorrer a uma manobra que permite que alguns projetos sejam aprovados com maioria simples.

Mesmo essa manobra exigiria o apoio de todos os senadores democratas, o que não está garantido.

Enquanto democratas mais conservadores veem o preço do pacote como um problema, representantes da ala mais à esquerda criticam as propostas por serem mais tímidas do que gostariam.