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Crise da Evergrande é ameaça em país onde 90% têm casa própria

Crise na Evergrande - Reuters
Crise na Evergrande Imagem: Reuters

Cristina J. Orgaz

Da BBC News Mundo

01/10/2021 21h06

Fazer a bolha imobiliária desinflar sem ser perfurada. Esse parece ser o objetivo da China.

E uma das primeiras vítimas dessa nova tática do gigante asiático é a segunda incorporadora residencial do país em número de vendas.

A gigante Evergrande atravessa momentos difíceis que a deixam à beira da falência. A empresa tem uma dívida enorme que gira em torno de US$ 300 bilhões (R$ 1,6 trilhão).

As ações da empresa caíram 80% até agora este ano, coincidindo com o aperto regulatório imposto no ano passado pelas autoridades chinesas.

Durante o verão de 2020, Pequim impôs uma regra aos maiores incorporadores imobiliários que os obriga a situar seus níveis de dívida abaixo de certas métricas ou "3 linhas vermelhas" em referência à liquidez, ativos ou dívida das empresas.

"As casas são para morar, não para especular", disse o presidente chinês Xi Jinping em 2017.

Quanto à Evergrande, a China deu sinais de que não socorrerá a empresa, ou seja, vai deixá-la falir se ela não encontrar dinheiro para pagar seus credores com a venda de ativos ou partes do negócio.

No entanto, muitos analistas acreditam que o Estado provavelmente nacionalizará as mais de 1,5 milhão de casas que Evergrande possui em diferentes estágios de construção na China para evitar que as famílias sofram se o conglomerado eventualmente entrar em colapso.

Nos últimos dias, pequenas manifestações ocorreram em várias cidades chinesas.

O mercado imobiliário chinês é realmente atípico.

Em média, 90% dos cidadãos são proprietários de suas casas: nas áreas urbanas, essa proporção é de 87% enquanto nas rurais, chega a 96%, segundo um estudo sobre moradias na China realizado pela Universidade de Albany, nos Estados Unidos.

É uma das taxas mais altas do mundo.

Para efeito de comparação, nos Estados Unidos, a proporção é de 65,3%. Já na Alemanha, 51,1%.

No Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a proporção de domicílios próprios é de 66,4%.

Como explica Diego Fernández Elices, diretor-geral de investimentos da consultoria A&G, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, "o principal objetivo do governo chinês é a prosperidade comum e o fato de tantos cidadãos possuírem suas casas, o torna um setor que não pode ser descartado de forma alguma."

A "prosperidade comum" a que se refere Fernández é o slogan da última campanha promovida pelo presidente chinês, com a qual tenta "reduzir um enorme fosso de riqueza que ameaça a ascensão econômica do país e a legitimidade do governo do Partido Comunista", segundo assinala a agência Reuters.

"De acordo com as últimas estatísticas do governo chinês, a construção ainda responde por 30% do emprego total e, portanto, é importante demais para ser ignorada", diz Yves Bonzon, diretor do banco privado suíço Julius Baer.

No jargão econômico, empresas como a Evergrande são conhecidas como "grandes demais para quebrar" (do inglês "too big to fail"), uma vez que sua falência pode acarretar riscos sistêmicos para o sistema financeiro.

Por trás desta elevada percentagem de proprietários encontram-se alguns fatores que impulsionam há décadas uma expansão do setor marcado por cidades fantasmas, infra-estruturas desativadas e um modelo de construção selvagem, com preços exorbitantes.

Em 2020, o país entrou no que é conhecido como "a era dos 10 mil yuanes (moeda chinesa)", referindo-se ao fato de o metro quadrado ter ficado em média acima desse montante durante vários meses consecutivos, explica a agência de notícias EFE em análise recente.

'Sonho chinês'

Um dos fatores importantes que contribuíram para a bolha é cultural.

"A riqueza das famílias chinesas é baseada em tijolos, cimento e fervor especulativo. Mas do lado cultural, não existe apenas a aspiração de ser um proprietário, mas também existe uma demanda social não escrita: por exemplo, se você vai se casar, tem que possuir uma propriedade", explica Sam Lecornu, CEO e cofundador do fundo de investimentos Stonehorn Global Partners.

"Não há muitos chineses que consideram o aluguel como primeira opção. Ter um imóvel na China é, por definição, o equivalente ao sonho americano", acrescenta.

Há pouco mais de 20 anos, o setor imobiliário chinês não existia.

"Durante grande parte da segunda metade do século 20, a China foi uma sociedade pública de aluguel de massa, em que a propriedade privada representava menos de 30% do total de moradias. O imóvel era visto como um benefício de bem-estar social fornecido com pesados subsídios do governo socialista", diz em um estudo Youqin Huang, professor do Departamento de Geografia e Planejamento da Universidade de Albany, nos Estados Unidos.

"No entanto, na década de 1990, a China lançou reformas para privatizar e comercializar seu sistema habitacional, como parte de sua transição de mercado", acrescenta, referindo-se ao processo de abertura que levou ao explosivo crescimento econômico do país, especialmente após sua entrada em 2001 na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Investimento seguro

Outro fator que durante anos contribuiu para a compra de moradias foram os fortes entraves ao investimento no exterior.

Os cidadãos chineses que tinham dinheiro de sobra só podiam investir, assim, no mercado doméstico.

"Considerando os controles de capital que existem na China e os ativos nos quais se pode investir, o mercado imobiliário é um dos meus favoritos. E muitos chineses possuem mais de uma casa. Eles podem ter uma segunda ou terceira", diz Lecornu à BBC News Mundo.

Frequentemente, o que diferencia este mercado de qualquer outro no mundo é que os compradores geralmente "pagam um depósito inicial igual a 50% do preço da casa ou mesmo a compram diretamente em dinheiro", diz o fundador da Stonehorn Global Partners.

O uso de empréstimos bancários, portanto, não é tão recorrente quanto em outras grandes economias.

"Ao contrário do que aconteceu nos Estados Unidos com a chamada crise do subprime, os chineses não estão arrolando dívidas para comprar suas casas."

Sendo assim, como os chineses compram suas casas?

"Banco mamãe e papai'

Para os filhos do sexo masculino, em particular, a resposta está no "banco da mãe e do pai", apoiado pelo mercado de casamento.

Devido à lei do filho único, recentemente relaxada, existem cerca de 30 milhões a mais de homens do que mulheres procurando um parceiro na China, segundo os dados oficiais mais recentes.

Os pais chineses sabem que as chances de seus filhos se casarem aumentam se tiverem uma casa.

"É normal para o marido ter uma casa quando vai se casar", explicou à BBC em 2017 a pesquisadora Jieyu Liu, vice-diretora do Instituto China na Universidade de Londres SOAS, especializada em estudos sobre Ásia, África e Oriente Médio.

Naquele ano, o mundo ficou sabendo que 70% dos millenials chineses (entre 19 e 36 anos) eram donos de imóveis, uma das maiores taxas do mundo.

Muito econômicos

"Como os salários dos jovens são tão baixos, espera-se que a família do marido assuma a responsabilidade de comprar uma casa em nome do filho ou pagar o depósito. Muitas histórias de amor terminam em fracasso se os homens não tiverem uma casa antes de se casar", acrescentou a acadêmica.

Isso também é agravado pelo fato de que os familiares idosos muitas vezes vão morar com os filhos nos últimos anos de vida.

Muitos veem esse investimento no nome de seu filho ou filha como um investimento no futuro de toda a família.

O "banco familiar" também é o primeiro recurso para quem procura uma segunda casa, já que recorrer aos pais, avós ou até cunhados não é estranho na cultura chinesa, conhecida por poupar muito dinheiro.

O caso de Evergrande

No calor de todos esses fatores, nas últimas décadas cresceu um setor imobiliário com grandes benefícios, que em alguns de seus setores tornou-se descontrolado.

A indústria imobiliária do gigante asiático começou a superaquecer no fim da década de 1990, quando os reguladores da época procuraram incorporadores ansiosos para aproveitar as vantagens do boom da construção na China.

Empresas como a Evergrande começaram a se expandir no setor de alimentos, energia ou mesmo entretenimento, com a compra de um time de futebol.

Paralelamente, também passaram a investir no exterior.

Essa expansão foi feita por meio de dívidas bancárias ou financiada com depósitos de compradores de imóveis na China.

E os governos central e locais desempenharam um papel fundamental nesse crescimento.

"Além de privatizar as moradias públicas existentes e acabar com o fornecimento de moradias subsidiadas para aluguel, o desenvolvimento de moradias e propriedades privadas tem sido intensamente encorajado [pelo governo]", escreveu o professor Huang em seu estudo.

Isso porque na China a terra pertence ao Estado.

Ou seja, qualquer empresa ou organização que pretenda desenvolver um empreendimento, seja habitacional, industrial ou comercial, deve obter o direito de uso desse terreno.

Esse direito de uso, no entanto, tem um prazo limite: no caso de empreendimentos residenciais é de 70 anos.

Findo esse período, o Estado pode renová-lo ou revogá-lo.

Por isso, os incorporadores imobiliários normalmente não compram lotes de terrenos e os mantêm vazios por anos enquanto esperam por sua valorização, prática comum em outros países, como no Brasil, por exemplo.

"O governo geralmente vende (o uso) as terras de forma seletiva e, nesse processo, recebe dinheiro da venda das terras, sendo uma importante fonte de arrecadação", acrescenta Lecornu.

Além de o sistema imobiliário empregar milhões de pessoas na China, é correto dizer que as autoridades em diferentes níveis queriam que esse modelo continuasse funcionando, acrescenta o especialista.

O papel dos bancos

Para entender a bolha e o possível efeito dominó da crise de Evergrande, o papel dos bancos, também controlados pelo Estado, é fundamental.

"Bancos, seguradoras e fundos chineses forneceram financiamento significativo nos últimos anos e a grande exposição dos bancos chineses ao setor imobiliário é um dos riscos mais significativos que o sistema financeiro chinês enfrenta", diz Eiko Sievert, diretor da agência de classificação de risco Scope Ratings.

A empresa reduziu de 9,3% para 8,6% suas expectativas de crescimento para a China até 2021, devido "à falta de vigor do setor imobiliário chinês, que já desacelerou a atividade econômica nacional este ano", acrescentou.

Mas analistas concordam que o possível mal-estar social gerado pelas mais de 1 milhão de casas inacabadas caso a Evergrande venha à falência é um problema maior do que a própria dívida da empresa.

"O maior partido político do mundo é também o maior proprietário de imóveis na China. Tem grande interesse em intervir e usar todos os seus poderes para evitar novos distúrbios", alerta Lecornu, referindo-se ao que será o objetivo mais iminente de Pequim: que os cidadãos não sofram e continuem a confiar no "sonho chinês".