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Família de criador do Touro de Wall Street diz que não foi consultada sobre versão da estátua da B3

Esculturas de touro em Nova York e São Paulo; artista brasileiro diz que sua obra é "original" e "não replica" obra de outro artista - Reuters/EPA
Esculturas de touro em Nova York e São Paulo; artista brasileiro diz que sua obra é 'original' e 'não replica' obra de outro artista Imagem: Reuters/EPA

Mariana Sanches

Da BBC News Brasil em Washington

18/11/2021 09h18Atualizada em 18/11/2021 18h29

De um lado, um touro de bronze de 3,5 toneladas, com 3,4 metros de altura e 4,9 metros de comprimento, em posição de ataque em frente à Bolsa de Valores de Nova York, em Wall Street. De outro, um touro dourado, de 5 metros de altura e 3 de comprimento, em frente à Bolsa de Valores de São Paulo, a B3.

O primeiro, a obra original, foi trazido a Manhattan na calada da noite em 1989, como um presente do escultor italiano Arturo Di Modica, para quem a peça era um "símbolo da força e poder do povo americano".

O segundo foi inaugurado à luz do dia deste 16 de novembro de 2021, pela própria B3, para quem a peça "simboliza o mercado financeiro e a força do povo brasileiro".

Essa poderia ser só mais uma história de assimilação ou releitura por brasileiros de símbolos americanos. Mas, para especialistas em legislação e direitos de autor ouvidos pela BBC News Brasil, a B3 pode ter ferido direitos autorais com a estátua recém-inaugurada no centro de São Paulo e que causou polêmica na internet.

Isso porque nem a B3, nem o responsável por construir o touro de ouro, o artista plástico e arquiteto Rafael Brancatelli, consultaram ou pediram autorização de reprodução ao agente ou à família de Arturo Di Modica, "pai"do touro de bronze de Wall Street - segundo relatos ouvidos pela reportagem.

"Você foi a primeira pessoa a nos avisar sobre a existência desse touro em São Paulo", afirmou à BBC News Brasil Jacob Harmer, agente do artista até fevereiro deste ano, quando ele faleceu em decorrência de um câncer. A viúva de di Modica foi também consultada pela BBC News Brasil e afirmou não ter sido procurada nem pela B3, nem por Brancatelli.

Já, a B3 informou por meio de sua assessoria que "O artista Rafael Brancatelli nos disse que não existe essa necessidade de consulta (aos herdeiros de Di Modica) porque a obra dele não faz alusão ao touro de Wall Street em relação ao nome, desenho, cores e material".

Disse também que a obra significava "um presente para a cidade de São Paulo, visando à revitalização do centro histórico da cidade".

Arturo di Modica e sua obra, o touro em ataque de Wall Street - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Arturo di Modica e sua obra, o touro em ataque de Wall Street
Imagem: Arquivo pessoal

Construído com estrutura metálica tubular e múltiplas camadas de fibra de vidro de alta densidade, a escultura paulistana é finalizada com pintura dourada anticorrosiva.

"Foi mais de um ano de jornada, desde a concepção do projeto, para chegarmos a um conceito original e ao design de um touro totalmente brasileiro, com uma expressão representativa da bravura e a coragem do nosso povo", afirma Rafael Brancatelli, segundo comunicado enviado pela própria B3.

A bolsa de São Paulo afirma ainda que Brancatelli fez cerca de 150 versões de desenhos até "o resultado definitivo". "Trata-se de um design original, que não tem a intenção de replicar a obra de outro escultor", disse Brancatelli por meio da assessoria.

Mas para os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, não é bem assim.

"Pode ser, em tese, que o artista brasileiro tenha partido inicialmente do desenho original de Di Modica para dele ir se afastando na medida em que evoluía com os 149 designs posteriores. Mesmo assim, há muitas similitudes entre o resultado e a obra original", afirma o advogado Fredímio Biasotto Trotta, especialista em plágio artístico.

"No meu entendimento, o chamado 'teste do observador comum' é fundamental: ou seja, quando o público em geral, não especializado, consegue perceber a semelhança ou mesmo identidade de certos aspectos, é porque há cópia. Disfarçada, mas cópia", diz Biasotto Trotta.

Segundo o advogado, a mera inspiração em uma ideia já existente não representa violação de direitos autorais. Artistas podem - e fazem - esculturas da deusa Vênus e do deus Apolo com graus importantes de originalidade, sem que se caracterize cópia de obras anteriores.

"Mas quando um conceito (no caso, a força do mercado financeiro), é traduzida por uma obra que ganha sua forma na figura original de um touro, que simbolizaria esse conceito, essa obra original está protegida por direitos autorais", opina Biasotto Trotta. E nesse sentido, não admitir a inspiração do touro de Wall Street seria, segundo o advogado, "um agravante".

'Design diferente, material barato'

Touro dourado está em frente à Bolsa de Valores de São Paulo, a B3 - EPA - EPA
Touro dourado está em frente à Bolsa de Valores de São Paulo, a B3
Imagem: EPA

A família de Di Modica não informou se pretende acionar a Justiça para reclamar direitos autorais. O espólio do artista está em processo de inventório na Itália, o que torna a situação jurídica ainda mais complexa. O agente Jacob Harmer, no entanto, afirma achar improvável que a questão acabe judicializada.

Ele afirma que Di Modica nunca processou as fábricas chinesas que abarrotam as lojas de souvenirs de Manhattan com pequenas réplicas do touro, que muitos turistas levam pra casa depois de visitar NY. "Essa é a sina de todo grande artista, a cópia ou reprodução", diz Harmer.

As características do touro paulistano também não passaram despercebidas por Harmer. "Se você olha para o design do touro de São Paulo, vê que é completamente diferente (do original). O material parece um pouco barato, não é algo bem executado. Eu acho que definitivamente poderia haver processo se a escultura fosse idêntica ao Touro de Wall Street", reforça o agente.

Para ele, se ainda fosse vivo, o artista italiano Di Modica se aborreceria menos pela aparente reprodução da ideia do que pelo possível desvirtuamento de seu significado original. Nascido na Sicília em 1941, Di Modica fugiu de casa aos 18 anos para seguir o sonho de ser artista, que seu pai não aprovava.

Segundo Harmer, que é também biógrafo do artista na obra "Arturo Di Modica - o último mestre moderno", sem tradução para o português, Di Modica chegou a viver nas ruas de Florença em nome do sonho.

"Acredito que Arturo reclamaria que é só mais um golpe de autopromoção que nada tem a ver com o significado da obra original. O Touro dele não é uma ode ao capitalismo. Arturo chegou a ser mendigo em Florença enquanto tentava se viabilizar como artista. Depois veio a NY, nos anos 1970, e tinha que coletar materiais nas ruas com suas próprias mãos para as obras. E nos Estados Unidos ele obteve sucesso, conseguiu viver seu sonho. Então quando há a crise dos 1987, ele queria devolver à sociedade americana a lembrança de sua força e capacidade de sonhar. O touro é sobre isso, não sobre ganhar dinheiro em Bolsa", diz Harmer, em referência ao que ficou conhecido como "segunda-feira negra de 1987", quando o índice Dow Jones bateu -22,6% e os EUA viveram uma crise financeira.

Em São Paulo, a obra do touro também chega em meio a um momento social e econômico difícil enfrentado pelo país. Cerca de 13 milhões de pessoas estão sem emprego e a fome voltou a ser uma presença nos lares do país, o que tem levado a uma dramática busca de ossos e restos de comida para alimentação. Menos de 24 horas após sua instalação, o touro de ouro da B3 amanheceu com um lambe-lambe colado no dorso no qual se lia: "Fome".