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'Guru financeiro' usou rádios cristãs para roubar milhões de dólares de fiéis

William Gallagher acumulou US$ 32 milhões em um esquema que tirou dinheiro de idosos - Angelica Casas/BBC
William Gallagher acumulou US$ 32 milhões em um esquema que tirou dinheiro de idosos Imagem: Angelica Casas/BBC

Bernd Debusmann Jr.

BBC

13/12/2021 19h06

Para seus ouvintes, William Neil "Doc" Gallagher era conhecido como o "Doutor Dinheiro" — um guru financeiro que promovia seus serviços numa rádio cristã, transmitida por todo o conservador "Cinturão da Bíblia", nos Estados Unidos, que se espalha pelo norte do Estado do Texas.

Seus anúncios frequentemente terminavam com um slogan familiar: "Vejo vocês domingo na igreja". "O Doutor Neil Gallagher é um verdadeiro americano, com integridade em tudo o que faz", diz um narrador num vídeo corporativo postado no YouTube. "Sua paixão na vida é ajudar as pessoas a se aposentarem de forma segura, cedo e felizes."

O vídeo de três minutos elogia de forma entusiasmada os benefícios do "estilo visionário" do octogenário, alegando que ele havia conduzido mais de 1 mil pessoas à independência financeira por meio de sua empresa, a Gallagher Financial Group, enquanto também publicava um livro, Jesus Christ, Money Master (Jesus Cristo, Mestre do Dinheiro).

Na realidade, Gallagher, de 80 anos, não era nada disso. Pelo contrário, ele era um golpista que acumulou US$ 32 milhões (mais de R$ 150 milhões) num esquema de pirâmide que visou, em sua maioria, vítimas aposentadas de idades entre 62 e 91 anos.

Nos esquemas Ponzi, investidores que entraram no início obtiveram "lucros" ao retirar dinheiro de investidores que chegaram depois, que geralmente recebem a promessa de lucros consideráveis com risco muito pequeno.

Para que continuem, esses esquemas dependem num fluxo constante de novos integrantes dando dinheiro àqueles que já investiram. Quando isso não acontece, o esquema desmorona.

Segundo documentos judiciais, Gallagher vinha enganando pessoas por meio desse esquema Ponzi desde pelo menos 2013.

Suas duas empresas, Gallagher Financial Group, Inc. e a W. Neil Gallagher, Ph.D. Agency, Inc. foram fechadas pela Securities and Exchange Commission (Comissão de Valores Mobiliários) dos Estados Unidos em março de 2019. No mês passado, ele recebeu três sentenças de prisão perpétua de um juiz do condado de Tarrant, no Texas, além da sentença de 25 anos de prisão que já recebera em Dallas, em março de 2020.

gallagher - Angelica Casas/BBC - Angelica Casas/BBC
Gallagher usou sua conexão com comunidades cristãs para expandir seu esquema fraudulento
Imagem: Angelica Casas/BBC

Gallagher prometeu a sua vítimas lucros entre 5% e 8% de seu investimento, anualmente. Em vez disso, eles não receberam nada, com Gallagher usando a maioria de seus fundos em gastos pessoas e corporativos e para fazer pagamentos a investidores iniciais.

Para esconder a fraude, ele ainda apresentou extratos bancários falsos, mostrando saldos falsificados. A BBC não conseguiu contatar o advogado de Gallagher para algum comentário.

Apesar de o esquema de Gallagher ter atraído atenção da imprensa americana, seus métodos estão longe de ser novos. Esquemas Ponzi recebem esse nome devido a um trapaceiro dos anos 1920, mas outras variantes já ocorriam desde meados do século 19.

O meio que Gallagher usava para atrair suas vítimas - a rede de rádio "Christian" (cristã) - também é popular há décadas e continuou sendo mesmo diante da forte concorrência de meios de comunicação mais novos.

As quase 200 vítimas de Gallagher, no entanto, dão destaque a uma tendência diferente: fraude contra idosos, um crime que o FBI acredita estar crescendo, causando prejuízos de bilhões de dólares a cada ano.

Entre as pessoas que Gallagher explorava estavam uma mulher de mais de 70 anos, sofrendo de linfoma, que investiu mais de meio milhão de dólares; um operador comercial de jatos de areia; e policiais, tanto da ativa como aposentados. Muitas vítimas foram levadas a vender suas casas, tomar empréstimos de seus filhos ou voltar a trabalhar depois de já terem se aposentado.

'Pior caso'

Lori Varnell, chefe da equipe de Fraude Financeira contra Idosos da promotoria do distrito do condado de Tarrant, disse à BBC que foi o pior caso de fraude contra idosos que ela já viu em sua carreira.

"Esses são indivíduos que trabalharam suas vidas inteiras para economizar dinheiro. Era algo pessoal", disse Varnell. "Eles estão arrasados. Não foi apenas o dinheiro. Foi a traição."

Para alcançar suas vítimas, Gallagher promoveu os serviços de sua empresa em igrejas e por meio da rede de rádio Christian, um termo que engloba milhares de estações de rádio pelos Estados Unidos que transmitem programas de temática cristã, de sermões a programas de entrevista, música e notícias.

Nascida em 1920 - ano em que a rádio comercial foi lançada nos Estados Unidos -, a rede Christian continua imensamente popular no país. Mais de 20 milhões de ouvintes sintonizam toda semana, segundo o grupo Radio Advertising Bureau, representante do setor.

Varnell afirma que ela não ficou surpresa com o uso das rádios Christian pelo Doutor Gallagher para atrair suas vítimas. "Dentro da comunidade cristã, existe um nível alto de confiança. Especialmente aqui, no Cinturão da Bíblia", disse ela. "Assim que você começa a usar a língua cristã, usando suas palavras, sua frases, isso será um sinal para outros cristãos de que você é um cristão."

Depois que Gallagher estabeleceu uma relação de confiança com suas vítimas, elas ficaram menos inclinadas a "prestar atenção aos detalhes" do que estava acontecendo, disse Varnell. A tática é um típico exemplo de "fraude por afinidade", afirmou David Fleck, um ex-promotor de Los Angeles. Nesses esquemas, os trapaceiros visam membros de um grupo identificável, que vão de comunidades religiosas ou étnicas a algumas profissões.

Em muitos casos, eles usam integrantes do grupo para, sem perceber, ajudar a promover a trapaça para outros e ajudar a convencê-los de sua validade.

Fleck lembra de um incidente em que ele processou um homem que era integrante de seis igrejas diferentes. Depois de obter sua confiança, o homem roubou as identidades de 25 pessoas diferentes que ele conhecera na igreja, comprou casas em seus nomes e depois recolheu dinheiro de inquilinos.

Em outro exemplo, um homem da Califórnia foi preso em 2017 por fraudar mais de 200 imigrantes armênios em US$ 19 milhões, prometendo investir seu dinheiro em ações de tecnologia lucrativas.

"Você vê entre todos os grupos culturais e estrangeiros de todo o tipo de país", disse Flack. "Fraude por afinidade permeia todas as trapaças. Facilita muito as coisas para o trapaceiro."

Idosos são vulneráveis

Oficiais afirmam que os idosos são um grupo de afinidade particularmente vulnerável. Segundo o FBI, milhões de americanos de idade avançada tornam-se vítimas de fraude todo ano, acumulando perdas de mais de US$ 3 bilhões anualmente.

Jeffrey Cramer, ex-promotor federal, disse que os idosos são frequentemente alvos lucrativos para trapaceiros que acreditam que eles possuem economias substanciais.

"Em geral, eles têm mais dinheiro, porque trabalharam por mais tempo. Sua casa provavelmente tem valor, e eles têm um 401k [economias de aposentadoria]", Cramer explicou. "Não faz sentido tentar enganar alguém de 20 anos de idade. Alguém acima de 60 ou 70 anos pode ter múltiplos investimentos e uma casa que vale cinco vezes o que eles pagaram por ela."

Varnell concorda com a avaliação de Cramer. No caso de Gallagher, eles também se aproveitou das "diferenças geracionais" entre suas vítimas, além de sua fé disse ela.

"Essas são pessoas que acreditam que, quando um homem apertou sua mão e olhou em seus olhos, isso já está bom", afirmou. "Sua natureza é de acreditar nas pessoas, porque você não mente. Isso é contra os Dez Mandamentos."

Especialistas em fraude acreditam que apenas uma parcela de todos os casos sejam denunciadas. Quando eles acabam sendo julgados num tribunal, é pouco provável que as vítimas recebam muito - ou mesmo uma parte - de seu dinheiro de volta. O criminoso geralmente gasta o dinheiro logo, usando os recursos para continuar a fazer pagamentos fraudulentos ou tentando escondê-los em contas localizadas em paraísos fiscais.

No caso de Gallagher, um receptor apontado pelo tribunal só pôde receber aproximadamente 14 centavos para cada dólar. Gallagher havia gastado boa parte do restante, enquanto o resto foi lavado e seu paradeiro continua desconhecido.

Impacto emocional

Enquanto os custos financeiros podem ser devastadores para as vítimas e suas famílias, o verdadeiro impacto é mais profundo.

"Há um dano emocional e psicológico", disse Cramer. "Há um aspecto de constrangimento quando você trabalhou 20, 30, 40 anos e agora você não tem literalmente nada para mostrar como resultado disso."

No tribunal, muitas das vítimas de Gallagher falaram sobre o impacto psicológico. Entre elas, estava Susan Pippi, uma mulher de 74 anos que, com seu marido, perdeu centenas de milhares de dólares no esquema.

"Eu não confio em ninguém mais", disse ela em uma declaração divulgada pelos promotores do condado de Tarrant. "Com exceção de Deus e da minha família."

Mas é improvável que esse tipo de fraude desapareça, disse Varnell. Uma "ofensiva organizada" de fraudadores - muitos deles baseados no exterior - está roubando fundos de aposentadoria de americanos, numa taxa de "milhões a cada dia", afirmou ela.

Os idosos e suas famílias precisam ficar atentos para sinais. "Se você se considera um cristão, e alguém o aborda no ambiente cristão, você deveria ficar ainda mais desconfiado", afirmou ela. "O mesmo vale para se você for judeu, muçulmano, o que for. Se alguém o está abordando com uma base religiosa, você deveria ficar bastante desconfiado."

Cramer disse que fraudes por afinidade provavelmente ficarão mais comuns, com o amadurecimento de gerações mais jovens, mais familiarizadas com tecnologia, nas redes sociais. Um fraudador pode alcançar um público muito maior - mas se esconder por trás de uma conta e desaparecer.