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"Não adianta darmos remédio de febre quando há infecção", diz secretária do Tesouro sobre dívida dos Estados

18/10/2016 12h58

SÃO PAULO - O ajuste fiscal é uma das prioridades do atual governo e, neste sentido, um ponto decisivo nesta discussão envolve a alta dívida dos Estados. Muitos deles enfrentam uma situação de quase penúria e reivindicam melhores condições para rolar a dívida. Desta forma, o governo tem realizado uma estratégia para enfrentar esse momento de turbulência.

Contudo, não há solução fácil, conforme destacou a secretária do Tesouro Nacional Ana Paulo Vescovi, em entrevista para o podcast da Rio Bravo (confira o áudio pelo link: http://zip.net/blttYG).

Conforme destaca a secretária do Tesouro, a crise da dívida dos Estados vem se acumulando ao longo dos últimos anos em função dos desequilíbrios previdenciários. “Entre 2009 e 2014, houve, sim, um processo de reajustes salariais muito acentuado nos governos estaduais”. Para reagir a essa situação, Ana Paula Vescovi defende medidas transparentes em relação às contas públicas com o objetivo de retomar uma agenda de crescimento econômico sustentado. “Não adianta criar uma contabilidade criativa; nós precisamos enfrentar os problemas que, sabemos bem, são estruturais no Brasil”. 

Segundo ela, não é possível o governo federal conceder um alívio temporário ou ajudas adicionais nesse momento. " Não adianta nós darmos um remédio de febre quando você tem uma infecção, nós não vamos conseguir sair do problema", destaca. 

Confira a entrevista abaixo:

Rio Bravo - Por que a crise dos estados é estrutural?

Ana Paula Vescovi - A crise vem se acumulando há vários anos em função dos desequilíbrios previdenciários em especial. Esse é o principal ponto. Observe que os estados que estão em situação mais crítica são justamente aqueles que têm uma demografia diferenciada de servidores, em que a idade média dos servidores é mais avançada.

Isso impõe um déficit coberto pelos tesouros estaduais à Previdência do regime próprio, que é muito elevado. Estamos falando aí de R$ 9 bilhões no Rio Grande do Sul, R$ 12 bilhões em São Paulo, R$ 8 bilhões em Minas Gerais e um desequilíbrio próximo a esse também no Rio de Janeiro. Então ela é estrutural muito em função desse aspecto, que também está relacionado à questão dos aumentos salariais. São poucos os gestores que percebem que à medida que eles vão concedendo os aumentos salariais, os reajustes das diversas categorias, também se impacta atuarialmente a Previdência. Isso traz um impacto e agrava o déficit previdenciário, e o que houve de 2009 para frente até 2014 foi, sim, um processo de reajustes salariais muito acentuado nos governos estaduais.    

RB - Como os gestores não perceberam que haveria esse impacto a médio e longo prazo?

ANV - Muito provavelmente porque as receitas estavam performando também muito satisfatoriamente. Em particular, aqueles estados recebedores de renda de petróleo observaram um crescimento de royalties e participações especiais muito acelerado. Isso tudo também, outras questões do ciclo de crescimento econômico que houve nos anos 2000, isso implicou, sim, o crescimento muito forte de receitas.

A gora, quando essas receitas pararam de crescer, quando a economia parou de crescer ou começou a desacelerar até por questões fiscais, isso a partir de 2011, aí ficou um pouco mais difícil de observar espaço para continuidade dessas despesas permanentes. Podemos tomar aí vários fatores. Os estados se endividaram muito mais a partir de 2008, a crise internacional em especial, os estados também acirraram a concessão de incentivos fiscais. Então, somando todo esse pacote, nós hoje estamos onde estamos com estados, alguns deles em situação de colapso.

RB - Os governadores estão conscientes do tamanho desse desafio?

APV - Creio que eles tenham uma boa percepção do tamanho do problema. Eu sempre falo que nós temos 27 estados da Federação, 27 situações bastante diferenciadas, uns com situações mais graves, outros nem tanto, mas o que me preocupa é que acho que os governadores deveriam se engajar numa agenda mais conectada aos seus problemas.

Nós estamos falando aqui que a causa da crise dos estados é estrutural, nós deveríamos ter como remédio, como prescrição, também uma agenda de reformas estruturais, tal como o governo federal está tentando empreender, está se esforçando e propondo com muita ênfase nesse momento e partindo para o debate. Acho que os governadores deveriam protagonizar o mesmo processo.

RB - São esses mesmos governadores ou alguns desses governadores que têm demandado mudanças no encaminhamento dessa discussão. Como é necessário alcançar um consenso, ainda há espaço para ceder no tocante às demandas desses governadores?

APV - Primeiro que o governo federal mantém uma boa interlocução com os governadores e trabalhamos de uma forma a fazer esse debate. Eu, em particular, tenho feito esse debate. E acredito que está cada vez mais claro, um número cada vez maior de atores que não é possível o governo federal conceder um alívio temporário ou ajudas adicionais nesse momento.

Primeiro porque o governo federal tem um tamanho de déficit, existe uma crise a enfrentar muito grave também e nós precisamos reverter isso logo para recuperar a confiança, para o país voltar a crescer e gerar empregos. Segundo porque não vai adiantar, não vai resolver o problema. Não adianta nós darmos um remédio de febre quando você tem uma infecção, nós não vamos conseguir sair do problema. Então é nesse sentido que nós temos conversado muito. Alguns deles já começam a entender.

Um fato que nos chama atenção é que eles sinalizaram possível decretação de calamidade financeira, uma coisa parecida com o que o Rio de Janeiro fez recentemente antes das Olimpíadas e eu tenho explicado que nem todos estão com o mesmo caso que o Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro está impossibilitado de tomar operações de créditos, está completamente inadimplente e eles ficarão da mesma forma. Não adianta eles terem uma nota de classificação de risco com o Tesouro e ainda em condições de tomar crédito dentro da medida que calculamos com muito cuidado, muita responsabilidade, que seria esse espaço fiscal, mas mesmo eles declarando calamidade financeira será impossível o Tesouro conceder um aval diante de um gestor que já declarou publicamente que não tem condições financeiras. Então nós temos dialogado, explicado tudo e acreditamos que aos poucos vai amadurecer a percepção de que o ajuste precisa ser estrutural.

RB - A situação do Rio de Janeiro é a mais calamitosa de todos os estados?

APV - Sim. Nossa percepção é que a situação do Rio se agravou muito, que foram fatores se somando. Além dessa questão da idade média dos servidores e da questão previdenciária, nós temos o fato de o Rio de Janeiro ser um produtor de petróleo, então ter nas suas receitas rendas de royalties e participações especiais as quais declinaram muito fortemente num curto período de tempo por causa da queda de preços internacionais de petróleo, e além disso ter sua economia muito dependente de um arranjo produtivo também ligado ao óleo e gás. Foi uma série de impactos que foram se somando e eu vejo o Rio de Janeiro hoje como o estado com situação mais grave.

RB - Em que medida a sua experiência como secretária da Fazenda do Espírito Santo foi e tem sido importante para debelar esse desafio em relação às finanças estaduais?

APV - Vem um pouco antes disso. Quando estive no Senado assessorando o senador Ricardo Ferraz (PSDB-ES), nós vivemos um período muito acirrado de discussões federativas e costumávamos dizer que a federação brasileira estava passando por um esgarçamento muito perigoso. Várias medidas, inclusive rediscussão sobre distribuição de royalties, o rateio do FPE, guerra fiscal, várias discussões – e o Senado é a casa da federação, onde todos estão igualmente representados – nos levavam a esse diagnóstico de forma muito clara. Depois, como secretária de Finanças, foi possível observar mais de perto e por dentro a estruturação das finanças estaduais. Isso foi montando realmente um conjunto de informações que hoje são importantes para que eu esteja atuando muito mais próximo aos governadores e aos secretários de Fazenda.

RB - Nesse sentido, qual foi a importância do acordo que o governo fez com os estados?

APV - Esse acordo esteve assentado nas liminares concedidas pelo Supremo Tribunal Federal. O Supremo concedeu liminares modificando forma de fazer o cálculo das dívidas dos estados, de juros compostos para juros simples, e isso, na prática, implicou que os estados não tinham mais dívidas com a União. Eles recalcularam por eles próprios e pararam de pagar. Na prática, significou isso, enquanto o Supremo julgava o mérito da questão, o que implicou um custo mensal de 3 bilhões de reais ao Tesouro Nacional, o que nós tínhamos que equacionar muito rapidamente. É um custo de 36 bilhões por ano - impagável - até porque também tem uma questão de risco moral na forma de mexer no cálculo de juros dos financiamentos. Vai diminuir a luz do setor privado.

Então, é importante que se diga que o que nós fizemos foi, a partir do momento em que o Supremo deu dois meses para que a negociação fosse feita, sinalizou que ia dar ganho de causa aos juros compostos, enfim, nós negociamos da melhor forma possível. Então teve um período de seis meses de suspensão de serviço da dívida, sendo que os estados começaram a pagar imediatamente a partir de julho os meses que ficaram subliminares e sem pagar o Tesouro. F izemos então um acordo, a partir do ano que vem eles voltam gradualmente a pagar e, 18 meses à frente, todos estarão pagando normalmente, conforme juros compostos, mas com período alongado. Nós fizemos uma reorganização dos pagamentos ao longo do tempo, não houve nenhuma redução do estoque da dívida, nenhum abatimento do valor das dívidas e isso é importante que seja dito. Relembrando o que eu falei desde o início, não foi um acordo feito livremente. Foi um acordo feito assentado nessas liminares concedidas pelo Supremo Tribunal Federal a partir de abril deste ano.

RB - E por que o governo e a Secretaria de Tesouro defendem a extinção do Fundo Soberano?

APV - O Fundo Soberano foi um mecanismo pensado no momento que, em tese, o Brasil estava com um excesso de recursos em função do boom das commodities, arrecadação muito positiva e fez a opção de reservar recursos para o período seguinte. Isso, da forma como a contabilidade pública funciona no Brasil, se não fosse por um fundo privado, aconteceria que poderia gerar um déficit no ano seguinte a partir do momento que esses recursos fossem reinternalizados no orçamento.

O problema é que isso, na prática, não funcionou, porque o governo portou dinheiro, retirou dinheiro, colocou títulos públicos de empresas. Não é só uma questão do Fundo Soberano. Nós estamos buscando aqui fazer uma contabilidade transparente, uma apuração transparente das contas, um diálogo claro com aqueles que acompanham os resultados fiscais do governo federal.

E por que é importante? Porque nós temos que ter uma real dimensão do problema. Além de responsabilidade fiscal, o cumprimento de normas, de regras, nós temos que ter pés no chão e uma clareza muito grande de qual é o tamanho dos déficits, qual é o tamanho do desafio fiscal que nós temos no Brasil. Não adianta protelar, não adianta criar uma – eu vou ter que usar um novo termo aqui - contabilidade criativa. O que adianta é nós enfrentarmos os problemas que, sabemos bem, são estruturais no Brasil.

RB - Sanear as contas é, sem dúvida alguma, muito importante. No entanto, existe uma crítica, sobretudo de parte dos economistas que sustentam a contabilidade criativa, afirmando que o ajuste vai fazer com que a sociedade sofra mais a curto e médio prazo. Em outras oportunidades, você já falou que o ajuste pode gerar empregos no futuro. Queria que você comentasse como isso se torna possível a médio e longo prazo.

APV - Se nós contarmos o número de empregos que o Brasil perdeu desde que começou a ser rebaixado até perder a classificação de grau de investimento, provavelmente estaremos falando de 2 milhões de desempregos perdidos. Ou seja, a dívida pública cresce muito rápido em função de um déficit que é estruturalmente muito alto no Brasil. Nós estamos falando este ano de 2,7% do PIB e um déficit estrutural muito perto de 2% do PIB. Isso é muito alto e leva a essa aceleração da dívida. Então, diante desse quadro, a crise fiscal nos leva a uma perda de confiança muito forte e piora o quadro de investimentos, tanto os investimentos em portfólio quanto investimentos produtivos.

Isso nos leva a ter uma escassez de capital muito grande, porque nós estamos retirando recursos do setor privado e não necessariamente aplicando em algo que nos leve a uma melhor eficiência, melhor resultado. O que nós estamos falando, de fato, é de uma crise fiscal que retira crescimento, retira empregos e, analogamente, para que nós consigamos dar a volta por cima, voltar a crescer e recuperar a crise que se instala no Brasil, é preciso cuidado fiscal. Estamos fazendo de uma forma com o menor custo social possível. Porque, primeiro, estamos focados no estrutural ao longo prazo. O espaço que temos para reduzir despesas discricionárias hoje no governo é mínimo. Estamos fazendo um esforço enorme de revisão de programas que devem render 10 bilhões de reais a menos no orçamento do ano que vem, mas estamos falando de um déficit de 140 bilhões de reais final, né?

Esse esforço está voltado à contenção de gastos ao longo do tempo e à reforma da previdência. Dado o tamanho da crise, do desafio, 170 bilhões de reais é o que aparece mais imediatamente, mas não é só isso. Temos que voltar a fazer um superávit. Provavelmente estamos falando de 5,5% do PIB de reversão nas contas públicas, de um déficit para o superávit. O que precisamos fazer é ter disciplina muito gradual, mas de muito longo prazo, e ganhar com a recuperação da confiança.

À medida que nós consigamos aprovar essas medidas que estão sendo propostas, a PEC dos Gastos, a Reforma da Previdência, isso é uma ponte para que possamos recuperar a confiança e os investidores voltem a acreditar no Brasil, nos seus grandes potenciais, voltar a investir e isso, sim, reinicia um ciclo de crescimento. Mas nós temos toda consciência que, para o Brasil voltar a crescer de forma sustentada em 2,5%, 3%, 4% do PIB, que eu acho que deveria ser a nossa meta enquanto brasileiros, depende de nós reformarmos uma série de setores. Temos que fortalecer marcos regulatórios, as agências reguladoras, melhorar o desenho das concessões, voltar a fazer privatizações e ter uma agenda de gestão, de inovação dentro do serviço público. Melhorar as regras de funcionamento, dar incentivo para que os gestores busquem produtividade dentro das máquinas públicas também, apliquem melhor o dinheiro dos impostos e eu acho que esses incentivos precisam ser reconstruídos no Brasil, tanto junto aos servidores quanto nas agendas de governo de fato, os instrumentos gerenciais... Temos um grande espaço de reformas.  

RB - O quanto é importante, nesse cenário, que a sociedade esteja envolvida nesse debate ou mesmo nessa estratégia de recuperação da economia brasileira?

APV - Isso é fundamental. Eu tenho falado muito para os meus colegas. Sou do Ministério da Fazenda, de um tempo atrás. Fiquei afastada durante uns 8 anos e lá atrás nós conseguíamos ainda fazer ajustes fiscais aumentando impostos e reduzindo despesas discricionárias com investimentos, por exemplo. Hoje não é possível mais, não tem esse espaço. A sociedade não aceita pagar impostos mais, nosso desenho tributário, nosso sistema tributário é ineficiente, precisamos reformá-lo também, mais uma reforma que precisamos enfrentar. Não temos mais esse espalho de despesas discricionárias. É extremamente insuficiente. Nosso ajuste é muito maior que isso, nosso ajuste requerido é muito maior do que esse.

Então o que nos resta é jogar o papel de convencimento junto à sociedade, explicar de forma muito clara e didática. Nós vivemos em um sistema democrático, temos uma sociedade que melhorou muito em termos de equidade nos últimos anos, de ascensão social, de escolaridade. Temos que aproveitar essa mudança recente, inclusive da tecnologia, das redes sociais, das novas formas de comunicação, modernizar a política. Nós conhecemos essa política muito tradicional, congressual. Nós todos somos atores nessa nova política que é comunicar, explicar, convencer.

Outro dia eu estive com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e ele me falou isso: “A melhor coisa que nós temos a fazer nesse momento é falar, conversar, convencer”. Convencer é vencer junto. Então, nós temos que vencer esse desafio da crise junto com a sociedade e o nosso trabalho é aprender a comunicar com muito mais propriedade.