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Eles devem, não negam e contam como encaram dívidas; especialistas analisam

Endividado passa por estresse e, ao tentar resolver o problema sozinho, pode tomar decisões equivocadas - iStock
Endividado passa por estresse e, ao tentar resolver o problema sozinho, pode tomar decisões equivocadas Imagem: iStock

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

12/06/2017 04h01

Pode ser uma demissão, a crise econômica, o descontrole financeiro, os juros altos ou tudo isso junto. São muitos os motivos que levam ao endividamento, uma situação recorrente no atual cenário brasileiro, geralmente constrangedora, desagradável e difícil de lidar. A pedido do UOL, quatro pessoas com perfis bastante diferentes relatam como enfrentam o endividamento e especialistas em finanças comentam suas estratégias. 

Renegociou e está pagando 
Mariana*, 35, gerente de marketing

Uma dívida na casa dos R$ 40 mil foi transformada em 56 parcelas de R$ 700, que hoje Mariana consegue pagar --um compromisso a ser mantido por quatro anos. Até fazer o valor caber em seu orçamento, no entanto, houve muita angústia, tentativas frustradas de negociação com o banco e incessantes ligações de cobrança.

A gerente de marketing estava desempregada quando engravidou. Na época, seu marido tinha um negócio à distância, nos Estados Unidos, que ficou inviável com a alta do dólar. Ela passou então a usar seu limite no banco, de R$ 30 mil, até que este crédito também estourou. “Mesmo voltando a trabalhar depois da gravidez, eu não conseguia pagar tudo. As contas tinham acumulado e o maior problema era o limite do meu banco, muito alto.”

Nessa época, recebeu uma ligação da gerente do banco com uma proposta: 30 parcelas de R$ 2.400 mensais. “Comecei a chorar, fiquei morta de vergonha, falei que não tinha como pagar aquilo. Mas fechei mesmo assim, porque não via outra saída”, lembra. De fato, ela não deu conta e passou a “proteger” seu salário, depositando-o na poupança para o banco não fazer o desconto automático. “Me ligavam 200 vezes por dia cobrando e eu explicava que não tinha como pagar. Até que bloqueei o número.”

Hoje não tenho limite [de cheque especial] do banco e não pretendo voltar a ter
Mariana, gerente de marketing 

Começou então a receber cartas do banco com parcelas mais suaves daquela mesma negociação: em cerca de oito meses, a proposta chegou aos R$ 700 que cabiam no bolso. Ela deu sorte: em alguns casos, a tentativa frustrada de renegociação pode agravar ainda mais o problema. 

“Não gostaria de ter acumulado um montante desse em dívidas e preferiria estar aplicando o dinheiro que hoje vai para as parcelas. Mas é um imenso alívio conseguir resolver e estar com as contas e o nome em dia. Hoje não tenho limite do banco e não pretendo voltar a ter.”

O que diz o especialista

Mudar os hábitos é importante em caso de endividamento, assim como renegociar as dívidas com parcelas que realmente caibam no orçamento --caso contrário, a solução ficará só na teoria. “A renegociação e a revisão dos gastos devem ser colocadas em prática ao mesmo tempo, são ações conjuntas. É preciso reestruturar o orçamento para fazer essas parcelas caberem no bolso”, defende Fabio Gallo, professor de finanças da FGV-SP.

Antes da renegociação, lembra o professor, é essencial entender aqueles valores --muitas vezes os credores cobram indevidamente juros ou custos administrativos. Se o endividado não souber como fazer isso, deve buscar ajuda de quem entende, como órgãos de defesa do consumidor.

Procurou ajuda 
Bruno*, 39, microempresário

Com dívida de R$ 82 mil e sem sucesso nas negociações, Bruno decidiu procurar o Programa de Apoio ao Superendividado, do Procon-SP. Até a publicação desta reportagem --quando os juros não haviam aumentado ainda mais o tamanho do problema--, ele aguardava contato do órgão para receber as orientações de que tanto precisa. Fez um cadastro, participou de uma palestra e aguarda um retorno que, segundo lhe informaram, pode levar até quatro meses.

“Meu nome está sujo, recebo cartinhas ameaçadoras [das instituições financeiras], e-mails idem, tenho insônia e isso tira o sono da minha mulher. É uma situação chata, pesada, difícil. Mas no momento não há o que fazer, não tenho dinheiro para pagar. Tomo remédio para ansiedade e isso me deixa mais centrado. Também descobri uma maravilha, que é a possibilidade de o smartphone bloquear ligações: assim não falo mais com atendentes das empresas de cobrança, que ligam de manhã, à tarde, à noite, sábado e domingo.”

Aceitei as ofertas de crédito, até que comecei a usar um empréstimo para pagar o outro. O banco foi dando corda e me enforquei
Bruno, microempresário

Seu problema, explica, foi o excesso de crédito pessoal --usado para pagar as contas de uma empresa de marketing criada em 2014 com dois sócios. “A coisa desandou quando um grande cliente saiu de forma inesperada. Aceitei as ofertas de crédito, até que comecei a usar um empréstimo para pagar o outro. O banco foi dando corda e me enforquei.” Antes de ter o nome negativado, ele ainda conseguiu abrir uma conta em outro banco, no qual hoje faz suas movimentações financeiras. 

Bruno considerou as primeiras ofertas de negociação, feitas em março deste ano, impagáveis (54 parcelas de R$ 5.900). No mês seguinte, a proposta baixou (48 parcelas de R$ 4.800), mas continuou fora de sua realidade. “Sem resolver, os R$ 80 mil de hoje vão virar R$ 100 mil, R$ 150 mil. Temos de chegar a um meio-termo, um valor que seja bom para eles e para mim. Mas, até agora, me parece que quem fica inadimplente consegue uma condição melhor de negociação. Acredito que o Procon vai me ajudar, pois eles devem saber como latir tão alto quanto os bancos.”

O que diz o especialista

Diógenes Donizete é coordenador do Núcleo de Tratamento do Superendividamento da Fundação Procon-SP (superendividada é a pessoa/família que compromete mais de 30% da renda com financiamentos e parcelamentos). Ele afirma que, em 60% dos casos atendidos pelo núcleo, há chances de acordo com a instituição financeira já na primeira tentativa. E reforça a importância de só renegociar aquilo que realmente puder pagar, para não criar uma nova dívida (tentando pagar a antiga).

“Não aceite qualquer renegociação só para ganhar tempo. Também é muito importante manter a calma, pois o endividado será assediado por ligações de cobrança. Muitas feitas, indevidamente, fora do horário permitido. A empresa tem o direito de cobrar, mas a cobrança vexatória é proibida por lei”, afirma Donizete. 

Ainda não consegue resolver
Cláudio*, 44, analista de sistemas

Cláudio não sabe exatamente quanto deve: por volta de R$ 11 mil no cartão e R$ 20 mil no cheque especial. Mas tem certeza de que, no momento, não consegue resolver o problema. “As empresas de cobrança me ligam propondo que eu pague R$ 500 ao mês. Sempre pergunto se eles não têm algo de R$ 50. Com R$ 500 eu pago as contas da casa, faço mercado. Hoje minha dívida é impagável”, afirma o analista de sistemas.

Ele também não sabe se está com o nome sujo, mas conseguiu recentemente abrir uma conta em outro banco, usando um cadastro via aplicativo. Deixou assim de fazer movimentações na instituição para a qual deve: “Qualquer dinheiro depositado lá ia para o nada, eu estava apenas pagando juros”. Outra providência, a ser tomada nas próximas semanas, é se separar no papel para a mulher não ser legalmente afetada por suas dívidas.

Meu humor é proporcional ao saldo no banco e R$ 30 mil negativos deixam qualquer um deprimido
Cláudio, analista de sistemas

A história começou em 2013, quando foi demitido. Desde então, aventurou-se sem sucesso em diferentes áreas: segurança eletrônica, frete, táxi e Uber. “Depois dos 40, fica difícil se recolocar. E minhas iniciativas de negócio próprio não deram certo, porque não sei vender.” Em meio a essas tentativas, foi diagnosticado com depressão e hoje passa por tratamento. “Meu humor é proporcional ao saldo no banco e R$ 30 mil negativos deixam qualquer um deprimido. A dívida pode não ser a causa [da depressão]. Mas, quando o bicho pega, ressalta problemas que já estavam ali.” 

Sua esperança agora está em um novo emprego. Vai tomar conta de uma nova loja do sogro, que oferece serviços de gráfica. O plano é se estabilizar para só então resolver as pendências financeiras. “Devo, não nego, pago quando puder”, resume.

O que diz o especialista

Diógenes Donizete, do Procon-SP, afirma que uma dívida de pessoa física só pode ser considerada impagável em situações muito pontuais: desemprego, por exemplo. “Não há como pagar quando a renda da sobrevivência está comprometida, com o risco de a família ficar sem água, luz, deixar de comer”, reconhece.

Porém, assim que o endividado volta a ter renda, ele afirma ser possível regularizar a situação. “A pessoa que está superendividada passa por um estresse muito forte, o que abala suas emoções. Tentar resolver o problema sozinho não é a melhor das soluções: a ajuda nestes casos é sempre bem-vinda”, diz o coordenador do núcleo que atende os superendividados.

Quitou uma dívida considerada impagável
Maria*, 53, autônoma

A história de Maria é diferente das demais e traz uma mensagem positiva: ela não tem mais as dívidas que já considerou ser impagáveis. Este é o resultado de um processo de anos, que teve início em 15 de agosto de 2008, quando ingressou na irmandade D.A. (Devedores Anônimos). À época, estava seriamente endividada, sem emprego (apesar dos dois diplomas universitários), com a casa penhorada (hoje avaliada em R$ 3 milhões), luz cortada, sobrevivendo com o pouco que ganhava vendendo pães de mel na porta de uma igreja em São Paulo.

“Considerava minha dívida impagável, não via luz no fim do túnel e por isso pensava em suicídio”, resume ela, que então já frequentava o A.A. (alcoólicos anônimos). “Comecei a beber por causa das dificuldades financeiras. Mas, mesmo quando parei com a bebida, continuava só falando em dívidas”, conta ela, que trabalhava no mercado financeiro quando chegou aonde define como fundo do poço. Ela afirma que, ao sair dessa situação, conseguiu manter sua casa então penhorada e construir mais quatro. Hoje, vive desses aluguéis. 

Considerava minha dívida impagável, não via luz no fim do túnel e por isso pensava em suicídio
Maria, autônoma

Todo o processo de recuperação, relata, está associado ao programa gratuito composto por passos, tradições, promessas, ferramentas e reuniões presenciais (no seu caso em uma igreja na zona oeste de São Paulo, onde hoje Maria organiza as reuniões).

Essas transformações, conta, passam por questões comportamentais (“evite velhos lugares, velhos hábitos, velhas pessoas”) e também por uma ferramenta chamada de alívio de pressão (um pente-fino nas receitas, despesas e relação de credores para orientar o endividado --inclusive sobre como fazer possíveis negociações).

“Se quiser resolver, o problema é nosso [da irmandade]. Seja o que for: não existe dívida impagável. Mas, se quiser continuar endividado, o problema é seu.”

O que diz o especialista

Fabio Gallo, professor de finanças da FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas), reforça a importância de rever o orçamento familiar em caso de dívidas. Com um sistema chamado A, B, C, D --sendo cada letra uma categoria de gastos--, ele afirma ser possível planejar reajustes e mudar aqueles hábitos incompatíveis com o endividamento.

Alimentação: quanto será usado para manter as necessidades da família (cortando supérfluos)? Básico: quanto é preciso para cobrir aluguel, condomínio, água, gás? Contornáveis: aqui entram os itens que tornam a vida melhor, mas devem ser cortados no aperto (ex: TV paga, pacote de dados no celular, academia). Desnecessários: anuidade de cartão e tudo aquilo que gera a pergunta “por que mesmo eu estou pagando isso?”. “Essa classificação varia caso a caso. Se a pessoa usa o carro para trabalhar, ele pode ser contornável. Se usado somente aos finais de semana, é desnecessário”, exemplifica.

* Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados