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'Somos o tapete para o cliente pisar': o lado B de trabalhar em shopping

Foto de vendedora chorando viralizou em 2017, com texto de desabafo que já havia feito sucesso no Facebook em 2015 - Reprodução/Facebook/Kayla Heloísa
Foto de vendedora chorando viralizou em 2017, com texto de desabafo que já havia feito sucesso no Facebook em 2015 Imagem: Reprodução/Facebook/Kayla Heloísa

Juliana Carpanez

Do UOL, em São Paulo

10/12/2017 04h01

"Trabalhar em shopping é foda." Assim começa o desabafo escrito por Estefânia Rosa, 22, que viralizou no Facebook em dezembro de 2015. Exatos dois anos depois, outra vendedora republicou este mesmo texto e acrescentou uma foto sua chorando. De novo o conteúdo viralizou, desta vez com números ainda maiores: 225 mil reações, quase 100 mil compartilhamentos e 50 mil comentários.

Tamanha identificação mostra o desafio enfrentado pela função, que no final do ano pode ganhar ares sombrios.

"Por trás desse clima agradável de compras, promoções, papai noel e consumismo existem milhares de trabalhadores explorados e depressivos." É assim que termina o post de Estefânia, que, duas semanas após a publicação, largou a vida de vendedora de shopping (leia mais abaixo).

O UOL entrevistou vendedores e ex-vendedores, que contam as principais dificuldades desse trabalho. 

Luiza Filgueiras e Leiliane Domingues fizeram dois vídeos sobre sua experiência como vendedoras - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Luiza Filgueiras e Leiliane Domingues fizeram dois vídeos sobre a vida das vendedoras
Imagem: Arquivo pessoal

'Eles tratam os vendedores como serviçais'

Em dois vídeos postados em seu canal no YouTube, as vendedoras Leiliane Domingues, 31, e Luiza Filgueiras, 24, intitulam a categoria como de "sofredoras" e relatam o que acontece do outro lado do balcão. 

"Trabalhamos mais horas para bater as metas e em datas comemorativas dobramos o expediente, mas isso não é problema. O pior é a relação com os clientes. Eles tratam os vendedores como serviçais, como alguém que está abaixo deles na pirâmide do mundo [risos]", afirma Leiliane, funcionária de uma loja de acessórios femininos em um shopping de Florianópolis (SC).

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Segundo ela, é difícil lidar com a maioria dos clientes. "Há pessoas maravilhosas, mas muitos gostam de tratar mal, parece que faz bem para o ego. Chutaria que entre 60% e 70% têm esse comportamento."

Dizem que, antes, o vendedor estendia um tapete vermelho para os clientes. Hoje, nós somos o tapete, é assim que eles nos veem

Leiliane Domingues

Vendedora há cerca de dez anos, ela cita as atitudes mais irritantes. "A pessoa pode não saber interpretar um texto, fazer uma soma, mas acha que sabe tudo sobre direito. E que pode tudo: trocar uma roupa comprada há seis meses ou algo que estragou. Nesses casos, achincalham a vendedora, que mesmo humilhada tem de sorrir." Ela diz ter passado por "incontáveis" situações desse tipo, mas faz a ressalva: "Nunca apanhei".

Citando o lema "tempo é dinheiro", Leiliane critica quem faz da vendedora uma amiga ou psicóloga. "Não é possível dar tanta atenção para um único cliente. E, muitas vezes, quando depois nos encontramos de novo, na loja ou fora, elas fingem que nem nos conhecem."

Outro problema, em sua opinião, é causado por quem "mata tempo" no shopping, indo às lojas e fazendo com que o vendedor perca, à toa, sua vez de atender. Ela defende que só entre nas lojas quem for realmente comprar e diz que, com "tantas ferramentas", dá para pesquisar antes sobre os produtos e preços. 

Formada em publicidade, ela diz gostar da loja em que trabalha, onde "não ganha mal". Porém, acha difícil continuar muitos anos na mesma área, considerando que "sempre querem vendedores jovens e bonitos". Para quem vai fazer compras no final do ano, manda um recado:

Não descontem suas frustrações nos vendedores de lojas. Isso é terrível

Leiliane Domingues

'Situações como essas não podem ser consideradas normais'

Estefânia Rosa escreveu em cerca de dez minutos, no celular, o desabafo que viralizou em 2015  - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Estefânia Rosa escreveu em cerca de dez minutos, no celular, o desabafo que viralizou
Imagem: Arquivo pessoal

A gota d'água foi o atendimento a (mais) uma cliente que considerou arrogante, na loja de cosméticos onde trabalhava, em um shopping de São Paulo.

"Fiquei muito brava, aquele foi o gatilho para o desabafo. Peguei o celular lá mesmo e escrevi em cinco, dez minutos o que estava sentindo. Na primeira hora, foram 10 mil reações, não paravam de pipocar notificações", lembra Estefânia Rosa, 22, sobre o dia em que relatou nas redes sociais o "lado B" de trabalhar em shopping.

"Todo mundo no shopping ficou sabendo e muita gente se identificou. Teve também muita empatia, mesmo de quem nunca teve essa experiência, e isso foi o mais importante." Duas semanas depois do desabafo público, ela pediu demissão e hoje trabalha no departamento comercial de uma editora.

Situações como essas não podem ser consideradas normais. O post aumentou minha vontade de questionar e fez as pessoas refletirem sobre essa forma e ritmo de trabalho

Estefânia Rosa

Com quatro anos de experiência como vendedora, ela afirma que muitas metas são incompatíveis com a realidade e, assim, os funcionários ficam sem comissão. "Para cada cliente que você atende, pode haver um valor mínimo de vendas e uma quantidade mínima de peças. Querendo ou não, o vendedor acaba empurrando produtos e fazendo outras coisas porque tem um chefe atrás dele, buzinando." 

Para Estefânia, muitos vendedores acabam não questionando as condições de trabalho por falta de opção. Dois anos depois do post, ela faz uma atualização considerando a reforma trabalhista. "Muita coisa que escrevi lá vai acontecer de maneira mais intensa e ainda pior. Não só com os trabalhadores de shopping, com todo mundo, em um retrocesso mascarado de flexibilidade", diz.

Ela diz que não faz compras em shoppings, preferindo brechós, feiras e lugares onde encontre produtos de trabalho manual.

'Deixava coxinha no estoque e comia ao pegar os sapatos'

"É um caso de amor e ódio", diz Felipe*, 24, sobre a loja de sapatos onde trabalha em um shopping de Curitiba (PR). Vendedor há cinco anos, ele entrou nessa vida como temporário na época do Natal. A função, compara, é muito mais dinâmica do que a fábrica onde estava antes. Para o bem e para o mal.

Nos dias normais, consigo dar muita atenção aos clientes: estou bem alimentado, bem-humorado, descansado. Mas no Natal é enlouquecedor: parece que eles combinam todos lá fora de entrar na loja ao mesmo tempo

Felipe*

Em dezembro, ele vai trabalhar diariamente das 9h às 23h e diz haver uma pressão psicológica dos gerentes para que se faça isso. Sem hora certa para comer, ele afirma que, muitas vezes, a refeição é feita rapidamente na escada do estoque. E conta que já deixou comida neste mesmo lugar, para beliscar enquanto fosse pegar os sapatos escolhidos pelos clientes.

Eu dava uma mordida na coxinha e, antes de descer com as caixas, usava um pouquinho da pasta de dente que levava no bolso

Felipe*

No geral, diz se dar bem com os compradores e afirma que até já ficou amigo de alguns. A "categoria" que menos gosta, diz, é a dos indecisos, que pedem para descer diversas opções do estoque, demoram para decidir e, muitas vezes, saem sem comprar nada.

"Entendo que é preciso pesquisar, mas muita gente vai à loja sem saber o que quer. Pede uma sandália, por exemplo, sem especificar se é para um casamento, para usar na praia. Se os clientes entrassem mais decididos, metade das vendas seriam mais fáceis."

O sistema de rodízio dos vendedores é outro foco comum de reclamação, assim como os clientes que entram e não compram nada. "Eu desejaria muito, do fundo da minha alma, que os clientes entendessem que é comum esperarmos muito tempo em uma fila com vários vendedores fixos e temporários. Quando chega a nossa vez, ele entra e nos diz apenas que está dando uma 'olhadinha'. Perdemos nosso lugar, que é precioso, por causa disso."

'As pessoas querem ganhar no grito'

Fabio Santos trabalhava em loja de acessórios domésticos; após 24 anos, desistiu de ser vendedor  - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Fabio Santos trabalhava em loja de acessórios domésticos; após 24 anos, desistiu de ser vendedor
Imagem: Arquivo pessoal

Fabio Santos, 42, deixou a área de vendas após 24 anos e diz que agora está feliz com sua vida profissional. Ele trabalha como porteiro em um condomínio. O atual emprego, avalia, está mais de acordo com sua personalidade reservada. "Só lido com os moradores, vejo sempre as mesmas pessoas. Minha vida mudou muito, me sinto bem melhor, feliz", diz ele. 

O ex-vendedor diz já ter batido boca com um cliente, levando a discussão para seu gerente, e lembra de uma situação mais extrema, em que o consumidor chamou seu colega para brigar na rua. 

As pessoas são muito impacientes, às vezes querem ganhar no grito. E condicionam seu bom atendimento ao preço: se for caro, acham que você não atendeu bem

Fabio Santos

Para ele, os conflitos entre vendedores e clientes muitas vezes dispensam grandes motivos. "Às vezes não é algo importante, mas um monte de coisinhas todos os dias. Você vai aceitando e, quando estoura, é difícil. O trabalho vai fazendo mal e chega no ponto daquela moça do post, que fala em depressão", diz ele, referindo-se ao texto publicado por Estefânia.

Ele diz que só consideraria voltar a ser vendedor em caso de necessidade e, àqueles que não têm vocação para as vendas, aconselha: "Se puder, faça um curso, procure outra coisa, porque, uma hora, isso vai sufocar você". 

Das 10h às 22h só com pão com mortadela

Nathalia Iury já trabalhou em lojas de perfumes, presentes e semijoias  - Arquivo pessoal  - Arquivo pessoal
Nathalia Iury já trabalhou em lojas de perfumes, presentes e semijoias
Imagem: Arquivo pessoal

Quando fez um vídeo contando como é trabalhar em shopping, a publicitária Nathalia Iury, 25, fez questão de destacar também os pontos positivos da função. Segundo ela, sua experiência em quatro lojas de Campo Grande (MS) ajudou a driblar a timidez e a aprender muito sobre produtos até então desconhecidos, como semijoias e perfumes.

O lado negativo ela atribui à falta de consideração com os vendedores, seja dos donos desses estabelecimentos ou dos clientes.

Teve um ano que fomos obrigadas a dobrar o expediente no Natal. Era das 10h às 22h, sem conversa. Como não podíamos sair para comer, o dono da loja deu dinheiro para a gerente e falou para ela comprar pão com mortadela

Nathalia Iury

Em vez disso, diz ela, uma das funcionárias comprou comida, preparou em casa e levou para todas. Nathalia diz não ter vivido muitas experiências negativas com clientes e questiona quem fica "passeando no shopping".

Tem gente que está todo dia passeando no shopping, a gente sabe quem é. Se eu pudesse estaria fazendo outra coisa, estaria em casa, mas para essas pessoas parece um vício

Nathalia Iury

Em junho, Nathalia saiu do trabalho temporário em uma loja e agora atua em sua área de formação. Pela primeira vez em dois anos, ela aguarda o fim de dezembro para tirar alguns dias de folga e passar um Natal tranquilo com a família. 

* O nome foi trocado a pedido do entrevistado para preservar sua identidade