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Economia norte-coreana tem contrabando em alto-mar e início de liberação

Dinheiro norte-coreano traz imagem de Kim Il-sung, fundador da Coreia do Norte - Wong Maye-E/ AP
Dinheiro norte-coreano traz imagem de Kim Il-sung, fundador da Coreia do Norte Imagem: Wong Maye-E/ AP

Colaboração para o UOL, em São Paulo

13/04/2018 04h00Atualizada em 16/04/2018 11h12

Quando se fala em Coreia do Norte, pouco se sabe do país para além da retórica armamentista do ditador Kim Jong-un e da atual escalada da tensão com o presidente americano, Donald Trump.

Mas, mesmo sendo um dos mais fechados do mundo, o país também precisa que a economia funcione de forma adequada.

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Com poucas indústrias e agronegócio tímido, a Coreia do Norte passa por sérias dificuldades econômicas, já que não consegue produzir tudo de que necessita e é extremamente dependente da China, que fornece tudo aquilo que falta por lá.

As sanções impostas pela ONU (Organização das Nações Unidas) também tentam sufocar a já debilitada economia norte-coreana e, dessa forma, dificultar o desenvolvimento do programa nuclear.

Mercado negro e contrabando em alto-mar

É difícil obter dados confiáveis de um país tão isolado. Poucos especialistas ou organizações se comprometem a compilar dados econômicos por causa dessas dúvidas.

Apesar disso, é fato que uma tímida mudança vem acontecendo no país para que a iniciativa privada comece a prosperar.

Um fator que dá fôlego ao governo de Kim Jong-un é o mercado negro. Neste ano, por exemplo, a ONU anunciou punições contra 27 navios e 21 transportadoras marítimas, além de um empresário, que ajudavam a Coreia do Norte a violar as sanções econômicas.

“Navios norte-coreanos se encontram no oceano e fazem a troca em alto-mar, uma espécie de contrabando. Isso faz com que a Coreia do Norte consiga ter algum comércio e alguma coisa de tecnologia, mas jamais vai aparecer oficialmente por lá”, diz Alexandre Ratsuo Uehara, doutor em ciência política pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da FEA-USP (Faculdade de Economia e Administração).

Mercado privado informal é realidade não reconhecida

Além do mercado negro, a economia também aprende a sobreviver pela abertura --bem lenta-- que o governo de Kim Jong-un tenta fazer. Apesar de não reconhecer, o mercado privado (e também o informal) já é realidade no país. Dessa forma, o Estado já não controla mais toda a produção.

“Existem empresas legais e ilegais que operam fora do plano do governo. Hoje os mercados legais estão na vanguarda dessa nova economia de consumo”, diz o americano Curtis Melvin, pesquisador da Universidade John Hopkins (EUA) e especialista em economia norte-coreana.

Flores, roupas e doces vendidos na rua sob supervisão estatal

Nas empresas estatais, as mudanças também já começaram. Com o governo de Kim Jong-un, as companhias já contam com liberdades gerenciais para tentar ganhar produtividade e competitividade no mercado.

Flores, doces, roupas e comida são vendidos na rua, em feiras e pequenos mercados. Tudo, obviamente, com a anuência do governo central.

Por essa abertura, há margens de comércio privado que são toleradas pelo Estado. Um agricultor, por exemplo, já pode vender cerca de 30% do que produz no particular, e destinar o restante para o Estado --que pagará a ele.

População enfrenta possível desnutrição

Mesmo com tais mudanças, os impactos do isolamento sobre a população local ainda são grandes, principalmente sobre a alimentação.

“Como podemos ver se a economia está mais pobre se há quase nenhuma informação? Um indicador que foi apontado foi a estatura dos norte-coreanos, que, na últimas décadas, se reduziu, na contramão da população mundial. Podemos crer que há desnutrição”, diz Alexandre Ratsuo Uehara.

Apesar disso, o único integrante do corpo diplomático brasileiro residente na Coreia do Norte, o gaúcho Cleiton Schenkel, conta que é difícil ver qualquer racionamento de produtos na prática por lá, devido à dificuldade de acesso de estrangeiros a locais mais isolados.

“Existem mercados específicos onde os estrangeiros, basicamente diplomatas e membros de organismos internacionais, costumam frequentar. Nesses locais, onde se paga com dólar, euro ou yuan chinês, não se observa grande diferença na oferta de produtos, independentemente das circunstâncias”, diz Schenkel, que mora na capital, Pyongyang, com a família.

Saúde e educação grátis e sem violência urbana

Com o Estado comandando as principais ações na economia, ele também oferece saúde e educação gratuitas. Os cidadãos, contudo, não podem comprar carros e moram em apartamentos com contratos de uso (a propriedade é do governo). Até mesmo locais de lazer, como parques e estações de esqui, são do Estado, e seus ingressos são dados como "prêmio" à população.

Com pouca diferença social e rígido controle, casos de violência urbana são raros. “Deixo minha bicicleta sem cadeado ou corrente por onde vou”, diz o diplomata brasileiro.

China é o principal fornecedor

A China atualmente é o principal parceiro econômico da Coreia do Norte. Ela compra 85% de tudo que os norte-coreanos produzem, principalmente produtos agrícolas e de pesca, minerais e produtos têxteis.

Ao todo, as exportações da Coreia do Norte chegam a US$ 2,9 bilhões, segundo dados da CIA, a agência de inteligência norte-americana. Isso dá, mais ou menos, as exportações do estado brasileiro do Ceará.

A China também é responsável por 90% das importações norte-coreanas, que atingem US$ 3,7 bilhões. O país compra grãos, petróleo e máquinas e equipamentos dos chineses.

Obviamente que a dependência ocorre apenas de um lado. A China, não depende da Coreia do Norte economicamente, mas mantém relações com o país de Kim Jong-un por razões geopolíticas.

“O que a China deseja é garantir a hegemonia na região. A Coreia do Norte funciona como um Estado-tampão e garante, de certa forma, a distância da China com a Coreia do Sul e toda influência norte-americana. A Coreia do Norte está literalmente no meio do caminho. Por isso, a China compra essa 'briga' [comercial] para que esse país continue existindo”, afirma Fernanda Magnotta, professora da Faap e especialista em globalização e cultura.

Apesar da ‘ajuda’ chinesa, como compra muito mais do que vende, o Estado norte-coreano não consegue mais bancar serviços essenciais à população, atingindo em cheio a qualidade de vida.

“Eles têm déficit de conta corrente constante. Por isso, há 20 anos eles tinham indicadores muito melhores que os de hoje. As contas se deterioram rapidamente”, afirma Francisco Américo Cassano, professor de economia do Mackenzie.

Arroz, ovos e milho

Mesmo em um país fechado, com pouca indústria (e quase nenhuma de tecnologia), a roda da economia tenta girar. Por exemplo, a agricultura local, mesmo com dificuldade com insumos e tecnologia para melhorar o solo, produz arroz, milho, batata, trigo, carne de porco e ovos, sendo responsável por 25% do PIB (Produto Interno Bruto) no ano passado.

O setor de serviços representa 33% de tudo que o país produz, enquanto a indústria fica com a maior parte: 41% do PIB norte-coreano vem da produção de produtos militares, energia elétrica, químicos, mineração, metalurgia, processamento de alimentos e turismo.

A economia da Coreia do Norte cresceu 3,9% em 2016, de acordo com o sul-coreano The Bank of Korea, que estuda o PIB norte-coreano. Segundo o banco, esse foi o maior crescimento registrado desde 1999. Não há, contudo, estatísticas confiáveis de desemprego e PIB per capita da população.

Sanções

O bom resultado do PIB ocorre em meio ao agravamento das tensões entre as Coreias do Norte e do Sul e seu aliado, os EUA. Após novos testes do programa nuclear norte-coreano, em 2016, o país do sul decidiu fechar o complexo industrial que mantinha em parceria, chamado de Kaesong.

Assim, a Coreia do Norte se manteve ainda mais dependente da China. O comércio bilateral entre os países diminuiu 88%, já que a Coreia do Sul não queria que o dinheiro conquistado ali fosse destinado ao desenvolvimento da bomba nuclear do norte.

Mesmo assim, o governo de Kim Jong-un continua a desenvolver a arma de destruição em massa como forma de proteger o regime, já que o montante destinado ao programa nuclear não é significativo dentro do orçamento, conta Curtis Melvin, pesquisador da Universidade John Hopkins e especialista na economia norte-americana.

“Os soldados são, em grande parte, recrutas, portanto o custo não é um fator significativo. Os militares controlam as minas e a pesca para obter receitas de exportação, bem como mercadorias para venda na economia civil. Eles também vendem armas”, afirma.

“A fase de testes dos programas nucleares e de foguetes não é estimada como um grande componente da renda nacional. Eles estão fazendo isso muito barato. Eles não têm que pagar grandes salários aos cientistas de foguetes, por exemplo”, completa ele.

Dessa forma, as sanções internacionais impostas pela ONU não conseguem enfraquecer de forma significativa os planos do regime.

Contexto histórico

O país foi criado logo após a Segunda Guerra Mundial, como parte da divisão de áreas de influências entre a antiga União Soviética (URSS) e os EUA pelo mundo. A Coreia do Norte ficou na área de interferência soviética, enquanto a Coreia do Sul ficava sob a batuta norte-americana.

A Coreia do Norte, então, se desenvolveu influenciada por ideais comunistas, principalmente na economia. Estatizou os meios de produção e deixou nas mãos do Estado a responsabilidade de planejar e controlar toda a atividade econômica.

Em um primeiro momento, ainda na década de 1950, o aparato econômico coreano dependia de trocas realizadas com a então URSS. Basicamente tudo que o país não produzia conseguia com os russos. A situação se arrastou até o final dos anos 1980, quando o colapso do país soviético também se refletiu por lá, causando um enfraquecimento ainda maior da economia.

Desde então, sem seu maior parceiro comercial, o país --dempre governado pela família Kim-- sofre com os problemas de uma economia tão fechada, mas não autossuficiente. Ou seja, a Coreia do Norte não consegue produzir tudo de que necessita.

A dependência exterior é tanta que, após alguns anos de safras ruins, o país não conseguiu mais produzir alimentos suficientes para a própria população. Assim, decidiu buscar ajuda na comunidade internacional.

Toda essa fragilidade econômica abriu caminho para a China, que se tornou o maior parceiro comercial dos norte-coreanos, e também um contraponto aos americanos na região.

“A partir dos anos 1990, a China se torna a principal parceira da Coreia do Norte. A China compra coisas mais básicas, como têxteis, e oferece recursos energéticos à Coreia do Norte”, diz Alexandre Ratsuo Uehara.

(Reportagem: Vinicius Pereira; edição: Armando Pereira Filho)

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