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Ex-chefe da Sabesp: Para todos terem água, precisa de gestão, não só verba

O economista Gesner Oliveira - Reinaldo Canato / Folhapress
O economista Gesner Oliveira Imagem: Reinaldo Canato / Folhapress

Maria Carolina Abe

Do UOL, em São Paulo

02/08/2020 04h00

O novo marco do saneamento básico, aprovado pelo Congresso no final de junho, deve jogar mais luz sobre um setor que ficou "por muito tempo relegado a um segundo plano de importância". Isso vai mostrar que falta de água e esgoto tratado não é só uma questão de dinheiro, mas de gestão, planejamento e regulação.

A opinião é do economista Gesner Oliveira, sócio da GO Associados e ex-presidente da Sabesp (2006-10). "É claro que lei não faz milagre. Não é isso que vai assegurar que você vá resolver o problema. Mas ajuda bastante."

O UOL conversou com o especialista sobre o tema. Veja abaixo algumas de suas opiniões.

Não é só dinheiro, precisa de gestão

O que nos impediu até agora de ter saneamento para todos, segundo Gesner, não foi a falta de dinheiro em si. "Eu costumo dizer que você tem um tripé para infraestrutura, que envolve gestão, planejamento e regulação. As três coisas faltaram", afirmou. "Você vê que eu não falei em dinheiro. É menos uma questão de dinheiro, que é sempre importante, obviamente, mas não é a questão-chave."

Empresas hoje não têm capacidade de investimento

A imensa maioria das empresas que atuam no setor de saneamento, avalia Gesner, "não têm boa gestão, não têm boa governança, nem tem capacidade de investimento". "Muito concretamente, elas não conseguem, por exemplo, emitir uma debênture para captar recursos para investir. Não conseguem classificação de risco para tomar recursos junto a um órgão multilateral ou junto a um organismo financiador qualquer."

Por que a nova lei é bem-vinda

Gesner afirma que há três pontos positivos sobre a nova legislação:

  1. Acaba com uma regulação que hoje é muito heterogênea, o que gera risco regulatório e insegurança entre as empresas que operam no saneamento e aumenta os custos para captar investimentos
  2. Introduz mais competição no mercado e acaba com contratos precários, tornando as relações contratuais mais claras e seguras
  3. Estabelece metas mais claras de desempenho, o que deve trazer mais eficiência para o setor

Metas de universalização do saneamento são factíveis

Para o especialista, é possível universalizar os serviços (levar água e esgoto tratado para quase todos os brasileiros) até 2033 graças aos novos investimentos que devem ser feitos no setor.

"Com o ritmo atual de investimento, você não consegue cumprir as metas. Mas, se você dobrar o investimento, é possível. E o novo marco serve exatamente para isso: para dobrar, mais que dobrar o investimento."

Há interesse em investir em saneamento

O especialista afirmou que há "muito apetite para investir no saneamento por parte do setor privado". Por quê? " É um setor que, você está numa crise brutal como a atual, mas a demanda de água continua firme. E continuará. É uma demanda estável."

Falta competição para melhorar serviço

"Até recentemente elas [as estatais de saneamento] tinham uma certa reserva de mercado. Você não tinha grande preocupação de que uma outra empresa pudesse oferecer serviços melhores e mais baratos, e o município acabasse adotando outra empresa. É por isso que esta competição pelos mercados é importante. O município pode continuar com a empresa estatal, não tem problema, mas ele terá outras propostas, e a população vai avaliar qual é a melhor", afirmou.

Desperdício muito alto, eficiência muito baixa

Para ilustra a ineficiência que há no setor atualmente, Gesner citou que "hoje o Brasil perde 38,5% da água produzida", o que está acima da meta, que já é alta. "A meta [de desperdício] é 31%, que é muito alta. Você perder quase um terço da água é uma coisa horrorosa." Segundo ele, há "algumas [empresas] que perdem mais de 50% da água produzida".

Existe populismo tarifário

Em várias autarquias municipais, Gesner afirma que é frequente o "populismo tarifário", ou seja, a manutenção da tarifa de água em níveis muito baixos, que muitas vezes mal cobrem os custos, por interesses políticos.

"Você arrecada pouco, investe pouco, o serviço é de má qualidade. E, como a população percebe o serviço de má qualidade, também não se sente obrigada a pagar. É um círculo vicioso. É preciso romper, e criar um círculo virtuoso", afirmou. "Você acaba fazendo uma coisa supostamente 'camarada', que não é camarada, porque não presta um serviço bom".

Segundo ele, hoje "a tarifa é infinita para quem é mais pobre, porque ele [paga, mas] não tem água na sua casa".

Tarifa social para mais pessoas

Questionado se a privatização do sistema de saneamento pode levar a um aumento na conta de água, o especialista disse que "o mais importante não é se vai aumentar ou se vai baixar, mas se a tarifa reflete o custo do serviço".

Uma "estrutura tarifária mais justa", segundo ele, seria ter uma parcela maior de pessoas pagando uma tarifa social, mais baixa, e "uma compensação para as classes mais favorecidas".

Efeitos das novas regras já em 2021

O primeiro efeito das novas regras deve ser "um aumento de investimentos, que por si só ativa a economia", o que, segundo Gesner, é "muito oportuno nesse momento" de crise causada pela pandemia de covid-19.

Esses investimentos devem começar movimentando a indústria de construção e matérias-primas -por exemplo, indústrias química e petroquímica—, além de mão de obra, ou seja, geração de empregos pelo país. O segundo efeito deve levar pelo menos alguns anos a mais. "Uma estação de tratamento demora 2 ou 3 anos para ser construída."

Outros impactos positivos

Gesner Oliveira destaca que, além do impacto na economia, a universalização do saneamento também deve ter impacto sobre a saúde e a educação (hoje a falta de tratamento de esgoto e de água tratada faz com que muitos alunos fiquem doentes com frequência e faltem à escola).

O especialista também afirmou que há grandes possibilidades de reaproveitamento dos resíduos da cadeia do saneamento. Por exemplo, o uso do lodo do tratamento de esgoto como fertilizante, ou parar gerar energia.

"Normalmente, há uma negligência não só com saneamento, mas houve historicamente uma negligência com a área ambiental em relação ao saneamento, também deixando de ver as grandes potencialidades do setor em termos de economia circular."