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O que se sabe sobre o Renda Cidadã e por que a proposta foi mal recebida

Filipe Andretta

Do UOL, em São Paulo

30/09/2020 14h47

O projeto do presidente Jair Bolsonaro para a área social agora se chama Renda Cidadã e tem objetivos bem definidos: substituir o Bolsa Família, ampliar o número pessoas atendidas, aumentar o valor do benefício e suceder o auxílio emergencial, que alavancou a popularidade do presidente e acabará em dezembro. Com o novo programa, Bolsonaro espera criar uma marca social para tentar a reeleição em 2022.

Para isso, o governo precisa convencer o Congresso a aprovar uma proposta para financiar o programa. A ideia que foi apresentada até agora recebeu críticas de parlamentares e agentes do mercado e da sociedade civil.

Teto de gastos

Nesta segunda-feira (28), Bolsonaro esteve ao lado de ministros e líderes parlamentares para anunciar como pretende bancar o Renda Cidadã. Esse é o ponto mais polêmico, porque o governo precisa encontrar dinheiro no Orçamento sem criar gasto adicional, para respeitar o teto de gastos.

A lei do teto determina que os gastos públicos são limitados aos gastos do ano anterior, corrigidos apenas pela inflação. Ou seja, não adiantaria criar uma fonte de receita adicional para bancar o programa. Para respeitar o teto, a única saída é remanejar dinheiro de outras áreas.

Tirar dinheiro do Fundeb e de precatórios

A proposta anunciada pelo governo e líderes do Legislativo nesta semana mexe em dois pontos do Orçamento federal:

  • Direcionar ao Renda Cidadã até 5% dos recursos novos do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), aprovados pelo Congresso em agosto.
  • Limita o pagamento de precatórios a 2% das receitas correntes líquidas da União, utilizando o restante no Renda Cidadã;

Essas duas fontes de financiamento se somariam ao Orçamento do Bolsa Família, que deve ser de quase R$ 35 bilhões em 2021. As alterações dependem da aprovação de uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição), que deve ser encaminhada pelo governo.

Usar Fundeb é visto como drible ao teto

O Fundeb é o principal mecanismo de financiamento da educação no país. Em agosto, o Congresso aprovou uma emenda à Constituição que aumenta progressivamente a participação da União no fundo —dos atuais 10% para 23%.

Em julho, durante a votação do Fundeb no Congresso, o governo já havia tentado, de última hora, usar R$ 8 bilhões do fundo para financiar o novo programa social, que na época era chamado de Renda Brasil.

A tentativa foi vista como uma manobra do governo para driblar o teto de gastos, visto que o Fundeb está fora do teto.

O novo avanço da equipe econômica sobre o dinheiro do fundo foi mais uma vez criticado pelos relatores do Fundeb no Senado e na Câmara.

Pouco depois do anúncio do governo, o ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) Bruno Dantas afirmou que juridicamente é possível uma emenda constitucional que mude o teto dos gastos, mas "o problema é o significado político para o compromisso com gestão fiscal responsável. Emenda constitucional pode tirar dinheiro do Fundeb para mascarar mudança do teto? Pode, mas por que tergiversar?", escreveu nas redes sociais.

Dantas afirmou que "inflar o Fundeb para, em seguida, dele tirar 5% para financiar outro programa é rigorosamente o mesmo que inserir mais uma exceção no parágrafo 6º do art. 107. Por que não fazê-lo às claras?", questionou.

Críticas ao uso da verba para precatórios

O uso de dinheiro destinado ao pagamento de precatórios também enfrenta críticas. Precatórios são dívidas da União reconhecidas após decisão definitiva na Justiça.

Assim, a proposta do governo é destinar menos dinheiro para quitar dívidas com empresas e cidadãos que estão na fila para receber, como aposentados, pensionistas e pessoas desapropriadas.

Com isso, o governo conseguiria remanejar cerca de R$ 40 bilhões dentro do teto de gastos.

Porém, o mercado financeiro interpretou a proposta como uma tentativa de criar gastos sem cortar despesas. Afinal, as dívidas reconhecidas em precatórios se acumulariam se parte do dinheiro fosse destinada ao Renda Cidadã, com o pagamento delas apenas sendo adiado.

Para a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a proposta é ilegal e injusta, pois gera um calote em cima de pessoas que ficaram anos na Justiça para poder receber. O jurista Miguel Reale Jr., um dos autores do impeachment dos ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff, afirmou que a proposta do governo configura uma pedalada fiscal e poderia levar ao impeachment de Bolsonaro.

Segundo Dantas, do TCU, usar dinheiro reservado para o pagamento de precatórios "parece truque para esconder fuga do teto de gastos".

Enquanto o impasse não se resolve, seguem indefinidos detalhes do Renda Brasil, como o valor exato do benefício, os critérios para ter direito ao dinheiro e a data de início do programa.

Qual deverá ser o valor do benefício?

Hoje, o Bolsa Família paga em média R$ 190 por mês. O governo Bolsonaro pretendia chegar a pelo menos R$ 300. O auxílio emergencial pagou parcelas de R$ 600, mas o governo reduziu o valor a R$ 300 ao prorrogar o benefício até o final do ano.

O relator do Orçamento de 2021, senador Márcio Bittar (MDB-AC), afirmou que o valor do benefício no Renda Cidadã ainda não foi definido, mas deve ficar entre R$ 200 e R$ 300, pelo menos no primeiro ano.

Novo nome para o 'cancelado' Renda Brasil

Inicialmente, o substituto do Bolsa Família se chamaria Renda Brasil. Mas, no dia 15 de setembro, Bolsonaro declarou que não se falaria mais na proposta até 2022 (ano da próxima eleição presidencial), e ameaçou dar um "cartão vermelho" para quem insistisse na ideia.

Apesar da declaração, Bolsonaro nunca abandonou o projeto. Pouco após a o "fim" do Renda Brasil, Bittar disse ter sido autorizado pelo presidente a criar o Renda Cidadã.

Bolsonaro rejeitou propostas da equipe de Guedes

A irritação de Bolsonaro com o Renda Brasil se deu após membros da equipe econômica divulgarem medidas em estudo para bancá-lo.

A ideia original da equipe do ministro Paulo Guedes era acabar com o abono salarial, o seguro-defeso, o salário-família e o Farmácia Popular e usar o dinheiro desses programas para ampliar o Bolsa Família. Após ser divulgada pela imprensa e repercutir negativamente, a proposta gerou um conflito entre o presidente e o Ministério da Economia.

No final de agosto, Bolsonaro deu um puxão de orelha na equipe econômica ao criticar a ideia de acabar com o abono salarial. Vieram, então, novas sugestões.

O secretário especial de Fazenda, Waldery Rodrigues, um dos principais assessores de Paulo Guedes, falou em congelar aposentadorias e restringir o acesso ao seguro-desemprego.

As medidas também geraram repercussão negativa. Foi depois disso que Bolsonaro resolveu "proibir" o Renda Brasil, deixando claro que não aceitaria financiar o novo programa social lançando mão de propostas impopulares.