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Reforma do IR é boa, e esquerda deve apoiar, diz líder de auditores fiscais

Filipe Andretta

Do UOL, em São Paulo

07/07/2021 04h00

Cobrar imposto sobre lucros e dividendos distribuídos aos mais ricos é uma bandeira levantada há décadas por partidos de esquerda, mas foi o governo de Jair Bolsonaro (sem partido), com uma equipe econômica liberal, que abraçou a proposta. Para Kleber Cabral, presidente do Sindifisco Nacional (sindicato dos auditores fiscais da Receita Federal), o projeto é um avanço em direção à redução da desigualdade social —por isso, precisa de apoio popular e de parlamentares da oposição.

Em entrevista ao UOL, Cabral afirma que a reforma do Imposto de Renda (IR) apresentada pelo ministro Paulo Guedes (Economia) não é a ideal, mas corrige parte importante das injustiças tributárias.

Hoje o Brasil tem um sistema regressivo, concentrador de renda. Quer dizer, a desigualdade não é um acidente, é algo que está planejado, induzido pela própria legislação tributária, porque quem ganha mais paga menos.
Kleber Cabral, presidente do Sindifisco Nacional

Um levantamento do Sindifisco com dados das declarações de 2020 (os últimos divulgados pela Receita Federal) mostra como o IR pesa menos para empresários e investidores. Enquanto um empregado com salário entre R$ 10 mil e R$ 15 mil pagou 14,5%, contribuintes na mesma faixa de renda que declararam ter recebido lucros e dividendos pagaram 3,1% (veja detalhes no quadro abaixo).

IR cobrado hoje por faixa de renda -  -

Como os lucros e dividendos são fontes de renda típicas de pessoas de classe média e alta, a isenção beneficia quem deveria contribuir com parcelas maiores. Esse benefício também puxa para baixo a média do imposto cobrado pela Receita Federal.

Além da tributação de lucros e dividendos, o projeto do governo tem outras medidas que coincidem com propostas defendidas em estudo inédito do Sindifisco, como:

  • aumento da faixa de isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física
  • redução do imposto para pessoas jurídicas (IRPJ)
  • tributação de remessa de lucros ao exterior
  • fim da remuneração de sócios e investidores por meio de juros sobre capital próprio

Segundo o presidente do Sindifisco, grupos que representam empresários e investidores beneficiados pela isenção de dividendos atacam o projeto porque querem manter o privilégio. "Muitas vezes as queixas vêm disfarçadas de defesa da classe média, como se estivessem defendendo justiça fiscal."

Cabral afirma que a proposta tem defeitos —o principal deles, a limitação para declarações simplificadas, que pode prejudicar alguns trabalhadores de classe média ou baixa.

O auditor discorda da isenção de R$ 20 mil para lucros e dividendos distribuídos por micro e pequenas empresas. Cabral também defende um reajuste nos limites de dedução com aposentadorias, dependentes, gastos com saúde e com educação.

Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

UOL - Quando se diz que os ricos pagam pouco imposto no Brasil, quem são esses ricos?

Kleber Cabral - Existe uma progressividade na arrecadação que vai até 40 salários mínimos por mês. A partir dali decresce fortemente. Quem ganha mais de 320 salários mínimos por mês não chega a pagar 1% sobre a renda auferida.

A principal razão para isso é a isenção dos dividendos, e o projeto busca agora corrigir esta distorção. Os muito ricos pagam muito pouco no Brasil.

Tributar a distribuição de lucros e dividendos é uma demanda histórica principalmente da esquerda. O que o senhor achou da proposta do governo Bolsonaro?

É um grande avanço. Ela é uma quebra de paradigma de 25 anos em que o Brasil aplicava essa regra de isenção, muito diferente do mundo. É de fato paradoxal esse governo apresentar uma proposta que sempre foi defendida pela esquerda, enquanto os governos de esquerda nunca se encantaram com ela.

Percebo que há um esforço de tentar alinhar o Brasil a boas práticas internacionais. O ministro Guedes é muito fascinado por essa ideia, e isso tem contribuído.

A OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], o Ciat [Centro Interamericano de Administrações Tributárias], o FMI (Fundo Monetário Internacional)... todo mundo defende que há razões econômicas, além da justiça fiscal, para tributar o lucro das pessoas jurídicas e depois os dividendos para as pessoas físicas.

Alguns setores apresentaram queixas. A principal delas é a de que, somando com os impostos que as empresas já pagam, essa tributação ficaria pesada demais. O senhor concorda?

Não faz sentido. Há uma subtributação principalmente no Simples Nacional e no lucro presumido. As empresas de lucro real, embora tenham uma alíquota nominal de até 34%, têm regras que transformam a alíquota efetiva em 23%.

Então o que está se colocando agora é, finalmente, um passo na direção de uma efetiva progressividade. É importante não aumentar a carga tributária global, nós defendemos isso.

Mas o projeto vem na direção de reequilibrar o peso dessa carga nos ombros dos brasileiros. Hoje ele pesa mais sobre o assalariado, baixa renda e classe média, e pesa muito pouco sobre os grandes recebedores de dividendos.

É natural que haja essas queixas, mas muitas vezes elas vêm disfarçadas de defesa da classe média, como se estivessem defendendo justiça fiscal.

Estão na verdade defendendo seus próprios interesses, o que é legítimo, faz parte do debate. Mas é preciso ver como é que se comporta o resto do mundo. Mesmo os países emergentes aplicam a tributação de dividendos.

O projeto traz uma isenção de R$ 20 mil sobre lucros e dividendos distribuídos por micro e pequenas empresas. Como o Sindifisco vê esse ponto?

Nós achamos alto esse limite. Na nossa proposta, ele seria de R$ 5.000 mensais e para qualquer formato de empresa. Um pequeno investidor na Bolsa com rendimento de até R$ 60 mil por ano em dividendos ficaria isento, mesmo que as empresas lá sejam todas grandes. Levaria em conta quem está recebendo, não quem distribui o lucro.

Quem é a classe média no Brasil? Ela tende a pagar uma parte da reforma?

A classe média é a grande beneficiada do projeto. O governo propôs o aumento da faixa de isenção do IR para R$ 2.500 por mês.

É menos do que o Sindifisco propõe, mas beneficia quase 6 milhões que deixam de pagar o imposto. É a classe média baixa mesmo. E o ajuste das faixas de renda beneficia todo mundo.

O fim do desconto simplificado de 20% para quem ganha mais de R$ 3.333 por mês não pode prejudicar a classe média?

Esse ponto está fora da curva, não nos agradou. Na hora em que se retira isso [o desconto simplificado], uma boa parte do benefício da correção da tabela será engolido por esse prejuízo relativo.

Aquele que não tiver nenhuma despesa com educação, com saúde, que não tiver dependente, pode até pagar mais.

Está na hora de as elites pagarem um pouco mais no Imposto de Renda?

Sim. Hoje o Brasil tem um sistema regressivo, concentrador de renda. A desigualdade não é um acidente, é algo que está planejado, induzido pela própria legislação tributária, porque quem ganha mais paga menos.

O ministro Paulo Guedes havia falado em acabar com as deduções, porque elas beneficiariam os mais ricos. A proposta do Sindifisco aponta o contrário. Por quê?

O Brasil é um país muito pobre. Quem ganha mais de dois salários mínimos pode ser chamado de rico, mas não é desse rico que estamos falando.

Os ricos mesmo, que concentram 99,5% da riqueza, não são assalariados, recebem grande parte por dividendos. Não pagam IR nem têm sobre o que deduzir.

Então, ao limitar as deduções ou acabar com elas, estão atrapalhando a vida do assalariado.

O senhor acredita que essa proposta consegue avançar no Congresso, apesar do lobby contrário?

O lobby vai ser forte. A gente já vê alguns veículos de imprensa não muito plurais batendo no projeto. Tem parlamentares que foram apoiados por segmentos empresariais que não estão contentes.

Isso é natural, faz parte da democracia. Mas há vários avanços que estão bem direcionados no projeto, e a gente espera que ele seja aprovado.

A esquerda deveria apoiar este projeto, mesmo sendo do governo Bolsonaro?

Sem dúvida, e vai apoiar. O projeto vai na linha da simplificação, da justiça fiscal e de medidas antielisivas [contra sonegação]. Temos algumas críticas pontuais, mas o conjunto da proposta é bom.