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Por que medalhistas brasileiros, como Rebeca, têm poucos patrocinadores?

Rebeca Andrade e suas duas medalhas dos Jogos Olímpicos de Tóquio: ouro no salto e prata no individual geral - Laurence Griffiths/Getty Images
Rebeca Andrade e suas duas medalhas dos Jogos Olímpicos de Tóquio: ouro no salto e prata no individual geral Imagem: Laurence Griffiths/Getty Images

Renato Pezzotti

Colaboração para o UOL, em São Paulo

07/08/2021 04h00

O Brasil já garantiu 21 medalhas em Tóquio. Com isso, bateu o recorde de pódios em uma única edição dos Jogos Olímpicos, até então obtido na Rio-2016. O número se contrapõe a um problema histórico no país: a falta de apoio das empresas privadas aos atletas.

A ginasta Rebeca Andrade é um exemplo. Ela ganhou um ouro e uma prata nesta edição das Olimpíadas, mas tem apenas um patrocinador individual: a atleta estrelou um vídeo da Riachuelo em março deste ano e possui contrato com a rede até setembro.

Isaquias Queiroz, que conquistou o ouro na canoagem nesta madrugada (é sua quarta medalha olímpica, depois das 3 conquistas na Rio-2016), possui apenas contratos com Adidas, Petrobras e Conselho Nacional de Praticagem, além de ser atleta do Flamengo.

Na quinta-feira (5), viralizou um vídeo de Darlan Romani, quarto colocado no arremesso de peso e patrocinado pela Bridgestone, treinando em um terreno baldio em sua cidade natal. Depois da repercussão, o atleta afirmou que a escolha havia sido uma opção própria.

Mas os medalhistas olímpicos brasileiros têm mesmo poucos patrocinadores? Por que as marcas não investem mais?

Especialistas apontam que a questão é "sistêmica", por envolver variáveis como investimento público, contexto de negócio, atenção do público, cobertura da mídia, gestão de carreira dos atletas e estratégias de marcas.

Tradição no país é patrocínio com dinheiro público

Amir Somoggi, da consultoria Sports Value, diz que um dos grandes problemas é a tradição do investimento de dinheiro público no esporte olímpico.

"O Brasil tem um histórico muito grande de investimento de dinheiro público no esporte, pelo patrocínio de empresas como Correios, Petrobras e Caixa, por exemplo. Isso é um vício, uma doença. O país emprega mais de R$ 750 milhões em recursos públicos anuais no esporte. Não há uma cultura de investimento de dinheiro privado", afirma.

Para se ter uma ideia, 80% da delegação brasileira em Tóquio (242 dos 302 atletas) recebem alguma ajuda de custo do governo federal. Em 18 das 33 modalidades que o Brasil disputou no Japão, todos os atletas participam do programa Bolsa Atleta, que paga entre R$ 370 e R$ 15 mil mensais aos contemplados.

Somoggi diz que o esporte olímpico, com raríssimas exceções, não dá retorno. Apesar disso, afirma que os atletas vão dominar espaços na mídia, especialmente no digital. "Há uma projeção da [consultoria] Nielsen mostrando que os ídolos esportivos vão ampliar em quatro vezes seu valor atual de mídia até 2023. É um caminho", diz.

Empresas poderiam fazer mais, diz consultor

Ricardo Fort, que foi vice-presidente global de patrocínios e eventos da Coca-Cola entre 2016 e 2021, lembra que a falta de patrocinadores não é um problema que acontece só no Brasil. Mas diz que as empresas poderiam fazer mais.

"Os atletas podem ser usados na comunicação com consumidores, clientes e funcionários, ajudar a empresa a desenhar novos produtos e representar os interesses da sua geração em políticas internas e externas, entre outras ações", diz o consultor.

Fort acrescenta que as empresas poderiam até mesmo contratar os atletas como colaboradores diretos.

"Basta adotar políticas flexíveis de trabalho para que os atletas possam continuar seus treinamentos. O custo dessas opções é muito menor do que a maioria dos executivos pensa e, pela minha experiência, os resultados são garantidos", declara.

Fort diz que há uma miopia das marcas, que não enxergam os potenciais medalhistas. "Apesar de o desempenho dos atletas ser imprevisível nos Jogos Olímpicos, há alguns com muito mais chances de se destacar. A Rebeca Andrade era um deles. Qualquer marca bem assessorada poderia tê-la contratado e agora estaria comemorando seu sucesso. Foi uma oportunidade que todos perderam", afirma.

O UOL procurou a assessoria de imprensa de Rebeca para questionar se a ginasta recebeu ofertas ou se procurou empresas para pedir patrocínio. A assessoria pediu que a reportagem falasse com a Confederação Brasileira de Ginástica, que não respondeu.

Marcas teriam ignorado nadador medalhista

Em um post recente no Instagram, a RSP Sports, que representa outro medalhista, o nadador Fernando Scheffer, afirmou que várias marcas "ignoraram" os contatos da companhia sobre propostas de patrocínio para o nadador, alegando que "haviam selecionado atletas com currículos melhores ou com maiores chances de medalha".

Uma empresa de suplementos que patrocinava o atleta rompeu o contrato por mensagem no mesmo dia em que ele atingiu o índice olímpico, em abril deste ano, segundo a RSF Sports.

Apesar das recusas, Scheffer possui patrocínio da Poker Sports e apoio de BH Vida, Piracanjuba e Releaf.

Esportes não têm cobertura constante na mídia

Para Ivan Martinho, professor de marketing esportivo na ESPM-SP (Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo) e CEO da Liga Mundial de Surfe (WSL, na sigla em inglês) na América Latina, a falta de atenção da mídia às modalidades olímpicas também é um problema.

"Não existe uma cobertura constante dos esportes na mídia, então os atletas aparecem pouco. Isso diminui o alcance desses acordos, fazendo com que as marcas apareçam menos", afirma.

Para Eduardo Baraldi, CEO da agência Octagon, há um problema estrutural de falta de investimento no esporte de alto rendimento. Além disso, a cultura nacional, de olhar apenas para os atletas vencedores, prejudicaria este tipo de investimento por parte das marcas.

"É o reflexo de um sistema falho e não de um equívoco individual. Não dá para colocar a culpa em apenas um lado, todo mundo tem sua parcela de responsabilidade. O atleta precisa ter um cuidado maior com o que pode entregar em troca do patrocínio —e não pode ser só a medalha, a conquista, porque isso é imponderável. As marcas, por outro lado, precisam parar de olhar apenas para o que é mainstreaming", diz o executivo.

Para professor, atletas também são responsáveis

Martinho também aponta a responsabilidade dos próprios atletas, que precisam aprender a gerenciar melhor suas carreiras e se tornar bons criadores de conteúdo, segundo ele.

"Hoje, eles têm a cabeça muito focada na competição. Mas precisam aprender sobre redes sociais, criação de conteúdo e relações públicas. Não dá para ficar só no esporte", diz. "Não adianta transformar as marcas em vilãs. As empresas têm culpa, mas os atletas também precisam saber se vender melhor. Quem não é visto, não é lembrado", declara.

Martinho cita os atletas Thiago Braz, do atletismo, e Martine Grael e Kahena Kunze, da vela, que ganharam medalhas de ouro na Rio-2016 e foram ao pódio de novo em Tóquio. Martine e Kahena foram bicampeãs olímpicas.

"Boa parte do público sequer se lembrava dos nomes deles. Os atletas precisam aprender a contar histórias pessoais, provocar um pouco mais para conseguir ter relevância. Quem faz isso consegue ter um destaque enorme", declara.

Braz, atualmente, é atleta da Nike. Kahena faz parte do projeto #ElasTransformam, da construtora MRV, que apoia outras 12 atletas, duas delas medalhistas: Rayssa Leal, prata no skate street, e Bia Ferreira, finalista no boxe no domingo (8).

Douglas Souza é citado como bom exemplo nas redes

Para Martinho, um bom exemplo de criador de conteúdo é o jogador de vôlei Douglas Souza, que foi "pinçado" pela agência Mynd, que trabalha com influenciadores, para virar candidato a ídolo olímpico. Douglas tem mais de 3,2 milhões de seguidores no Instagram, onde publica vídeos do seu dia a dia.

O perfil de Douglas foi analisado entre os mais de 300 atletas brasileiros que estiveram em Tóquio. Logo após os jogos, o atleta deve começar a aparecer em comerciais.

O jogador de vôlei já assinou com a corretora XP, por exemplo, que patrocina o Comitê Olímpico Brasileiro e apoia Ricardo Lucarelli, companheiro de Douglas no vôlei, Mayra Aguiar, que ganhou bronze no judô pela terceira Olimpíada consecutiva, e o nadador Bruno Fratus, medalha de bronze este ano, entre outros atletas.

Pressão por resultados no marketing

Para Baraldi, da Octagon, as métricas dos anunciantes, hoje, são muito pesadas —e isso faz com que outros investimentos sejam priorizados.

"É difícil para uma marca fazer (e justificar) apostas. O que precisamos mudar é a cultura, mudar o formato, torná-lo mais humano. Existem diversos atletas que não ganharam medalhas nas Olimpíadas, mas são campeões mundiais há tempos e mesmo assim não têm patrocinadores", afirma Baraldi.

"Não pode ser assistencialismo. Atletas precisam ser bons produtos, mesmo que sejam em potencial. As empresas também são pressionadas por resultados, por números. As cadeiras dos executivos de marketing são muito importantes dentro das empresas. Eles precisam entregar resultados", diz Martinho.

Uma das atletas que tem parceiros de renome, por exemplo, é a nadadora Ana Marcela Cunha, medalha de ouro este ano na maratona aquática.

Eleita seis vezes a melhor atleta do mundo nas maratonas aquáticas e tetracampeã mundial (2011, 2015, 2017 e 2019) nas provas de 25 km, Ana Marcela é patrocinada por Ajinomoto, Nissan, Petrobras e Speedo.

Há vários tipos de patrocínio; veja quais

Nem sempre é simples para o público diferenciar qual marca patrocina quem, diz o professor da ESPM.

"Existem as marcas patrocinadoras do Comitê Olímpico Internacional (COI), do COB e das federações nacionais, das transmissões e, por fim, dos atletas", declara.

O COI tem mais de 80 marcas apoiadoras, divididas entre globais (como Alibaba, Bridgestone, Coca-Cola, Panasonic, P&G, Samsung, Toyota e Visa) e locais, que variam conforme a sede do torneio. Os jogos deste ano bateram recorde de arrecadação com patrocínios, de mais US$ 3 bilhões —o dobro do previsto.

O COB, por sua vez, tem acordos com XP, TIM, Prevent Senior, Havaianas, Riachuelo, Alliansce Sonae e Ajinomoto. As federações esportivas têm poucos patrocinadores —a Confederação Brasileira de Atletismo, por exemplo, é patrocinada por Nike, Prevent Senior e MaxRecovery. Os valores não são revelados.

As transmissões olímpicas da Globo têm patrocínio de 12 marcas (Alpargatas, Ambev, Apple, Bradesco, Magalu, MRV, Natura, Netflix, Nivea, Prudential, Samsung e Sportsbet.io), com inserções em TV aberta, canais do SporTV e na Globo.com.

Nissan, MRV e Ajinomoto são exemplos de empresas que patrocinam diretamente os atletas, que fazem parte de suas "equipes" de embaixadores, uma espécie de time selecionado pelas equipes de marketing das empresas. Nesses casos, as marcas realizam "coberturas" do dia a dia dos atletas, mostrando seus treinos e suas histórias.