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Correios vão manter monopólio de cartas se forem privatizados; por quê?

Filipe Andretta

Do UOL, em São Paulo

21/08/2021 04h00

O projeto de privatização dos Correios aprovado na Câmara determina que a empresa continue com o monopólio (exclusividade) da entrega de cartas e outras correspondências (como boletos e cartões) em todo o Brasil. Normalmente, um serviço privatizado perde o monopólio, mas por que isso não vai acontecer se os Correios forem mesmo vendidos?

Segundo estudo contratado pelo BNDES, pode ficar difícil encontrar investidores interessados em assumir a atividade postal sem pelo menos uma garantia adicional para o negócio. Outra garantia poderia ser isenção de tributos ou subsídios do governo para viabilizar o serviço, mas isso não está previsto no projeto de privatização. A venda dos Correios ainda depende de aprovação no Senado.

Os Correios têm o monopólio do serviço postal, mas, na logística e entrega de mercadorias, concorrem com empresas privadas.

Monopólio privado para atrair investidores

O estudo contratado pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), feito pela consultoria Accenture, recomenda que seja mantido o monopólio do serviço postal. Essa seria uma forma de atrair investidores para assumirem uma atividade pouco lucrativa (ou mesmo deficitária).

Foram analisados os serviços postais de 11 países. De 2014 a 2019, todos registraram queda na atividade, entre 9,4% e 37,3%. O estudo aponta também que a receita dos Correios com correspondências caiu 40% entre 2015 e 2019.

Com a manutenção do monopólio postal, a estrutura nacional dos Correios permaneceria vantajosa sobre os concorrentes. O serviço de entrega, de onde viria a maior parte dos lucros, se beneficiaria da rede já consolidada, com acesso a todos os cantos do país.

O projeto de lei aprovado na Câmara vai nesse sentido. Determina a venda de 100% da empresa à iniciativa privada, criando a "Correios do Brasil". Essa nova companhia assumiria a concessão do serviço postal, com obrigação de garanti-lo em todo o território nacional.

Ela seguiria regras elaboradas pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e supervisionadas pelo Ministério das Comunicações.

Estudo recomenda isenção de impostos

Como a universalização do serviço postal custa caro e pouco interessa à iniciativa privada, seria necessário encontrar formas de custeá-lo.

Uma delas é a manutenção da estrutura nacional da empresa. Áreas lucrativas (como grandes centros urbanos no Sul e no Sudeste) compensariam parte do prejuízo em rincões do Brasil.

Mas isso não seria suficiente. O estudo recomenda, então, que o Congresso aprove uma isenção tributária. "Não seria uma redução na arrecadação atual e sim uma não arrecadação futura", diz trecho do documento.

O estudo aponta três dificuldades nesta solução:

  1. A isenção estaria restrita a tributos federais
  2. Seria difícil aprovar a medida
  3. Concorrentes poderiam questionar a legalidade em órgãos como o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica)

Segundo a Accenture, é possível também que o governo federal pague diretamente à empresa uma compensação pelo serviço postal.

Mas essa não seria uma boa solução, porque aumentaria os gastos públicos e teria a "imagem negativa de 'dar' dinheiro a empresa privada".

Se houver subsídio, o governo será obrigado a injetar dinheiro na empresa, algo que não acontece hoje. Os Correios não dependem de aportes do governo (são independentes) e distribuíram R$ 9 bilhões à União nos últimos 20 anos —o equivalente a 73% dos lucros no período.

Projeto não prevê isenção nem subsídio

O projeto de lei aprovado na Câmara não prevê subsídio direto do governo, nem cria isenções fiscais para os "Correios do Brasil".

Segundo o relator na Câmara, deputado Gil Cutrim (Republicanos-MA), a questão precisa ser avaliada depois por meio de lei complementar.

Humberto Ávila, professor de direito tributário da USP, afirma que uma imunidade de impostos ampla como a que existe hoje para os Correios seria muito difícil —dependeria da aprovação de uma emenda à Constituição.

Já uma isenção limitada de tributos poderia ser analisada pelo Congresso por meio de lei específica para o assunto. "Seria uma espécie de contrapartida pelo serviço público prestado pela empresa, mas ficaria restrita a tributos federais", afirma.

O Congresso Nacional não pode obrigar estados e municípios a abrirem mão dos impostos sobre o serviço postal. Assim, a empresa privada acabaria repassando aos consumidores custos com ICMS (estadual), ISS e IPTU (municipais).

Correios não pagam impostos atualmente

Os Correios hoje não pagam impostos como IPTU, ICMS, ISS e Imposto de Renda. A partir do momento em que a empresa for privatizada, ela perde a imunidade tributária e teria que repassar esse custo aos consumidores.

Ao longo das últimas décadas, ações judiciais questionaram se os Correios deveriam ter imunidade tributária também nas atividades típicas do setor privado. O Supremo Tribunal Federal entendeu que sim.

Um dos principais fundamentos da decisão é de que a empresa precisa da imunidade em todas as atividades porque ela assume o ônus de entregar cartas e correspondências pelo país inteiro. O lucro da empresa como um todo é o que torna viável a prestação de um serviço deficitário, mas essencial.

Imunidade custa R$ 2 bilhões por ano, diz estudo

Segundo a Accenture, o Brasil deixa de arrecadar cerca de R$ 2 bilhões por ano por causa da imunidade em tributos federais, estaduais e municipais aos Correios.

O fim desses benefícios seria o principal fator negativo da empresa com a privatização. O estudo não cita valores, mas diz que 79% do impacto seria sobre a atividade de encomendas, 15% sobre correspondências, e 6% sobre outros serviços.

Os Correios têm ainda outros benefícios em relação à concorrência. Veículos da empresa não param em barreiras de fiscalização, não precisam transportar documentos fiscais nem respeitar o rodízio de carros em São Paulo.

A Accenture conclui que a iniciativa privada poderia compensar a desvalorização da empresa com modernização, gestão flexível e maior capacidade de investimento, mas reconhece que o fim da imunidade tributária e demais benefícios é um desafio à privatização.

Empresa privada teria tarifa social

O texto da Câmara cria uma "tarifa social" para pessoas que não podem pagar pelo serviço postal. A tarifa poderia ser diferente para cada região do país, com base no custo do serviço, na renda do usuário e nos indicadores sociais da região.

Os detalhes dessa tarifa foram deixados para o contrato de concessão e para a regulamentação da Anatel.