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Reinaldo Polito

Intimidade demais pode atrapalhar

Retrato de Jânio Quadros (1954) do fotógrafo Chico Albuquerque - Chico Albuquerque/Divulgação
Retrato de Jânio Quadros (1954) do fotógrafo Chico Albuquerque Imagem: Chico Albuquerque/Divulgação

14/04/2020 11h46

De perto ninguém é normal.
Caetano Veloso

Esta história é bastante curiosa. Quando convidei o ex-presidente Jânio Quadros para participar de uma das solenidades de formatura do nosso curso de Expressão Verbal, tive o cuidado de segurar a galera que queria, porque queria, falar naquele evento. Segura aqui, cerceia ali, bloqueia acolá, mas qual o que! Vaza um, escorrega outro, escapa mais um, e a tribuna ficou repleta de 'penetras'.
Tudo gente boa de microfone. Todos muito experientes, encantadores de plateias. E essa turma falou, falou, falou. O público adorou. Aparecia um contando uma história interessante, em seguida outro com um caso mais instigante ainda, e assim foram se sucedendo os oradores. Sem contar que os alunos formandos também iam para o microfone para transmitir uma mensagem. Curtinha, mas todos falavam.

Posso dizer que aquele desfile de oradores se transformou num verdadeiro show de oratória. Uma aula que incluiu todos os aspectos relevantes que os alunos haviam estudado e praticado durante meses em sala de aula. Sem contar que os mais traquejados de tribuna sempre davam um toque especial com alguma novidade, que enriquecia ainda mais o aprendizado dos formandos.

Não sabiam eles, entretanto, que o melhor ensinamento ainda estava para acontecer. Talvez aquela turma de alunos formandos e seus convidados até tenham se esquecido dos discursos que ouviram naquela manhã de sábado, mas da aula que receberam de Jânio Quadros, jamais! Um primor de ensinamento.

Os limites da intimidade

Durante o curso, os estudantes de oratória aprenderam a tomar cuidado com o excesso de intimidade. Ouviram reiteradamente que, quanto mais natural e próximo das pessoas estiver o orador, mais eficiente será o resultado de suas apresentações. Essa proximidade afasta resistências e torna o orador mais simpático aos olhos do público. Até o terceiro passo da caminhada, pois, nas curvas seguintes, cuidados importantes precisam ser observados.

O excesso de aproximação pode levar a uma intimidade que nem sempre é positiva. O risco de ficar muito à vontade é que o brilho da aura começa a se esvaecer, tornando-a opaca e desinteressante. Como disse o comediante Joe Ancis: "As únicas pessoas normais são aquelas que você não conhece".

Se a proximidade é vista como algo positivo, por que, então, haveria perigo em nos relacionarmos de maneira mais íntima com os interlocutores? O risco é que essa aproximação demasiada talvez deixe a pessoa excessivamente à vontade e muito relaxada. Por esse motivo, a linguagem pode ficar mais desleixada e, em determinados casos, resvalar até na vulgaridade. Os cuidados com os detalhes passam a ser negligenciados, e, como consequência, talvez prejudiquem a autoridade de quem se apresenta.

São inúmeras as situações em que precisamos ficar atentos para não ultrapassarmos as fronteiras assinaladas em amarelo. Essa intimidade poderá ser negativa, por exemplo, quando nos apresentamos frequentemente diante de um grupo de pessoas em reuniões de trabalho, tanto no relacionamento com pares da própria empresa, como com clientes e fornecedores.

Essa descontração exagerada, com brincadeiras até inconvenientes, por mais que pareçam divertidas, com o tempo pode enfraquecer a credibilidade. Quem se apresenta em público pode brincar, ser descontraído e se expressar com leveza, mas deve ficar atento para aquela espécie de linha delimitadora que, se ultrapassada, chega até a manchar a imagem de forma irreversível.

A aula de Jânio Quadros

E a história do Jânio? Afinal, o que ele tem a ver com essa conversa toda? Como eu disse, vários oradores se apresentaram naquele evento. Quando chegou o momento de o ex-presidente falar, a plateia já estava exausta, desatenta, sem ânimo para se concentrar em discursos, por mais carismático que fosse o orador.

Tendo experimentado toda sorte de desafios ao longo de sua bem-sucedida carreira como orador, Jânio percebeu logo que o público estava distante, e que precisava trazer os ouvintes de volta à realidade. Por isso, interrompeu a mensagem que transmitia, fez uma longa e expressiva pausa, coçou o queixo, acertou os cabelos e contou a seguinte história:

"Recorda-me, por exemplo, quando proferia conferência em uma das universidades de São Paulo, e chamo conferência pomposamente a uma palestra, aluno que me interpelou pouco mais ou menos assim —Você poderia dizer-me...? Eu cortei o cerce. Disse a ele: você é uma contração do pronome vossa mercê, muito utilizado pelos senhores contra os seus escravos. Já ouviu falar em Benjamin Franklin? Não, eu não me refiro ao inventor dos para-raios, mas sim ao orador, ao diplomata. E ele disse certa vez com propriedade —a intimidade só produz arrependimentos e filhos. E, com o senhor, não desejo nem uma coisa, nem outra".

Assim, de maneira magistral, arrancou gargalhadas da plateia, e trouxe a atenção dos ouvintes de volta àquele ambiente. E deixou, com essa brincadeira, que foi um excelente recurso de comunicação, também um ensinamento importante: que intimidade demais pode produzir aborrecimentos.

Portanto, seja cauteloso. Faça todas as brincadeiras que desejar. Procure se aproximar o máximo possível dos ouvintes. Saiba, entretanto, que existe uma armadilha à espreita no meio do caminho. E ela será acionada quando os limites do bom senso não forem respeitados.

Superdicas da semana

  • Intimidade demais atrapalha
  • Excesso de brincadeiras pode comprometer a credibilidade
  • Manter certa distância ajuda a preservar a imagem
  • Não é pelo fato de as pessoas rirem que a brincadeira deve continuar

Livros de minha autoria que ajudam a refletir sobre esse tema: "29 Minutos para Falar Bem em Público", publicado pela Editora Sextante. "Como falar de improviso e outras técnicas de apresentação", "Oratória para advogados", "Assim é que se Fala", "Conquistar e Influenciar para se Dar Bem com as Pessoas" e "Como Falar Corretamente e sem Inibições", publicados pela Editora Saraiva. "Oratória para líderes religiosos", publicado pela Editora Planeta.

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