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Reinaldo Polito

Ao ler seu discurso, Lula cobre um santo e descobre outro

Lula discursa no evento de lançamento da sua pré-candidatura ao Planalto - Carla Carniel/Reuters
Lula discursa no evento de lançamento da sua pré-candidatura ao Planalto Imagem: Carla Carniel/Reuters

Colunista do UOL

10/05/2022 04h00

Comumente, levo mais de três semanas para preparar um bom discurso improvisado.
Mark Twain

Lula leu o discurso durante o evento de lançamento de sua pré-campanha com Alckmin no último dia 7, sábado. Para tomar essa iniciativa ele teve pelo menos dois bons motivos.

O primeiro, provavelmente, é que nos últimos tempos seus pronunciamentos improvisados não têm sido muito felizes. Em algumas ocasiões acabou por tocar em temas que não ajudam a pavimentar sua trajetória para retornar ao Palácio do Planalto.

A última de Lula

Uma das últimas escorregadelas foi ter dito na entrevista que concedeu à revista Time, na qual foi capa, que o presidente ucraniano, Volodymyr Zelenski, é tão culpado na guerra entre Rússia e Ucrânia quanto Putin. Até os petistas ficaram preocupados com essa declaração. Esse tipo de comentário inconveniente acaba servindo de munição aos opositores, que se aproveitam dessas falhas para repeti-las ad nauseam nas redes sociais.

Até alguns jornalistas que se dedicam a fazer defesa de praticamente todos os seus discursos encontraram dificuldade em garimpar argumentos que justificassem sua posição. Tentaram aqui e ali, mas acabaram por se render dizendo que ele se equivocou nessa abordagem.

A luz amarela

Somando esse deslize a tudo o que Lula defendeu nos últimos tempos, como, por exemplo, o fim do teto de gastos, a revogação das reformas trabalhista e da Previdência, o fim das escolas cívico-militares, etc., o pacote se torna insustentável para manter sua posição nas pesquisas e, quem sabe, até se distanciar ainda mais de Bolsonaro. Tanto que os números mais recentes acenderam a luz amarela para aqueles que cuidam de sua campanha.

Assim sendo, um discurso bem elaborado e criteriosamente ponderado como foi esse do lançamento da pré-campanha evitaria que Lula corresse o risco de produzir mais algumas das pérolas indesejáveis que cultivou nas explanações mais recentes.

Uma base para a campanha

O segundo motivo, que ao fim e ao cabo pode ser visto como consequência do primeiro, é o de ter feito um discurso que cobrisse os pontos mais relevantes das suas propostas para chegar à chefia do Executivo brasileiro.

Além de servir como base para seus futuros contatos com os eleitores, a mensagem poderá também municiar a militância, que terá no conteúdo de sua fala uma espécie de bússola para divulgar o que o líder petista pretende realizar em um eventual terceiro governo.

Foi um bom pronunciamento. Lula conseguiu, portanto, ao ler a peça oratória, atender a essas duas finalidades: evitar os temas indigestos e apresentar um conteúdo de qualidade. Cobriu assim, com todos os méritos, um santo que estava ao relento.

Resolveu um problema e criou outro

A leitura não é o forte de Lula na comunicação. Não que leia mal, longe disso. Assisti à sua apresentação várias vezes e fiquei impressionado com seu desempenho.

Destacou com habilidade todos os tópicos relevantes, interpretando com perfeição o sentimento da mensagem pela maneira como pronunciou as palavras e pelo tom de voz utilizado. Em nenhum momento truncou as frases. As pausas, muito ensaiadas, foram realizadas de forma adequada sempre no final do pensamento.

Alguns pontos positivos

Essa habilidade de interpretar corretamente o sentimento da mensagem e a correção no uso das pausas contribuíram para que tocasse a emoção da plateia. Lula demonstrou que foi para o evento preparado para acertar e disposto a impressionar.

Não era uma exposição só para aquele auditório. Sabia que falava também para uma população que o assistia a distância. Tenho acompanhado seus discursos lidos nas últimas décadas. Esse foi o melhor de todos.

Ainda assim, sua apresentação sustentada no texto escrito está distante, muito distante da qualidade de suas falas de improviso. O problema maior está na comunicação visual. O ex-presidente olha de vez em quando para a plateia, não com a frequência que deveria olhar, e demonstra claramente que não vê ninguém. É como se levantasse a cabeça só por obrigação. Perde, dessa forma, o contato com o público. Deixa de interagir com os ouvintes.

É melhor de improviso

Ao tomar a palavra sem anotações, Lula se transforma em um imbatível sedutor de plateias. À medida que desenvolve seu raciocínio, aproveita as circunstâncias do ambiente, fazendo constantes referências às pessoas presentes, à militância e aos temas que envolvem o momento. É um mestre na arte da improvisação.

Conversou com os ouvintes

Nesse evento, mesmo antes de começar a ler e logo depois de ter concluído a leitura, falou um pouco de improviso e demonstrou naquele momento toda sua capacidade oratória. É como se conversasse com cada uma das pessoas que estavam à sua frente.

Por isso, se ao ler o discurso, conseguiu cobrir um santo, ao mesmo tempo, ao deixar de falar de improviso, descobriu outro.

Superdicas da semana

  • Use o recurso de comunicação com o qual se sinta mais confortável
  • Uma boa leitura pode ser tão eficiente quanto a fala de improviso
  • Um bom improviso deve ser muito bem elaborado
  • Uma boa leitura deve ser muito bem treinada

Livros de minha autoria que ajudam a refletir sobre esse tema: "Como falar corretamente e sem inibições", "Os segredos da boa comunicação no mundo corporativo" e "Oratória para advogados", publicados pela Editora Saraiva. "29 minutos para falar bem em público", publicado pela Editora Sextante. "Oratória para líderes religiosos", publicado pela Editora Planeta.