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Publicidade infantil? Ministro da Justiça desconhece, mas ela já é ilegal

Mathias Pape/UOL
Imagem: Mathias Pape/UOL
Pedro Hartung

11/02/2020 09h13

As recentes declarações do Ministro Sérgio Moro sobre publicidade infantil e a atual consulta pública pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) sobre o tema despertou, novamente, o debate para algo que já havia sido pacificado em nossa sociedade.

Todo esse acúmulo histórico e democrático encontra-se ameaçado diante de um atropelo regulatório governamental e do não entendimento da própria lei protetiva da infância já existente, conforme entendem várias instituições brasileiras em manifesto publicado recentemente sobre a consulta.

Após anos de debate público, pesquisas nacionais e internacionais, conduzidas inclusive pelo próprio Ministério da Justiça, opiniões de especialistas comprometidos com a infância de diversas áreas e atuação concreta de órgãos do Sistema de Justiça e do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, o Estado brasileiro tinha chegado ao importante consenso de que as crianças brasileiras devem ser protegidas contra a publicidade dirigida diretamente a elas.

Sim, publicidade infantil é prática abusiva

Publicidade infantil é uma prática abusiva nos termos do Código de Defesa do Consumidor, uma exploração comercial da hipervulnerabilidade da criança nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente e uma forte afronta à regra constitucional da prioridade absoluta do Artigo 227 da Constituição Federal.

O próprio Judiciário já havia se pronunciado, por decisões recentes do STJ - Superior Tribunal de Justiça, que publicidade infantil é uma prática abusiva e, portanto, ilegal.

Nesse sentido, grandes empresas de diversos setores já haviam se posicionado no mercado no sentido de cumprir a lei e proteger as crianças. A Coca-Cola anunciou mundialmente em 2013 que não faz mais publicidade para pessoas com menos de 12 anos de idade, por considerar uma prática injusta com as crianças.

A Mercur (empresa nacional do setor de material escolar), a Mars (multinacional da área de produtos alimentícios) e outras empresas conscientes já se abstêm há anos dessa prática antiética, que coloca uma pressão altamente persuasiva em um indivíduo que não consegue responder a ela com igualdade.

Mesmo assim, prática persiste

O problema do ainda persistente uso dessa prática junto às crianças -em todos seus espaços de convivência, não só na televisão e internet, como também nas escolas, parques e praças -, é justamente o descumprimento da lei por seus concorrentes.

Apesar da atuação constante de denúncia e fiscalização por parte dos Procons, Ministérios Públicos e Defensorias, empresas desleais -e preguiçosas -, continuam a fazer publicidade infantil por ser mais fácil convencer crianças do que seus pais, mães ou responsáveis.

Ainda, em debates públicos não assumem sua responsabilidade e culpam justamente as famílias, já tão sobrecarregadas, pelo fato de não dizerem "não" aos desejos infantis implantados pela sedução da publicidade.

O crime compensa?

Ora, se são os pais e mães os responsáveis por decidir e educar, por que são as crianças o alvo preferido da publicidade?

A resposta é simples: o crime (art. 67 CDC) compensa. Compensa implantar desejos em mentes mais suscetíveis e ainda em desenvolvimento; compensa convencer crianças e pedirem insistentemente aos seus pais, transformando-as em verdadeiras promotoras de vendas dentro da família; compensa conquistar consumidores fiéis desde o berço até a vida adulta; compensa atravessar a autoridade familiar e falar direto com os filhos e filhas, desrespeitando a educação provida tão arduamente pelas famílias brasileiras.

Contudo, como na maioria dos casos em que a lei é desrespeitada, quem paga o maior preço somos todos nós como sociedade, mas especialmente as crianças.

Sobrepeso e erotização

É epidêmico: uma em cada três crianças está com sobrepeso, obesidade e doenças crônicas não transmissíveis, não por acaso, em um contexto em que a publicidade infantil de bebidas e produtos alimentícios é sempre daqueles com alto teor de sal, açúcar e gorduras, gerando um impacto gigantesco nos gastos em saúde pública por parte do Estado.

É assustadora a posição erotizada de meninas, vestidas e maquiadas como adultas, em diversas publicidades infantis camufladas de entretenimento em vídeos online.

É irresponsável realizar um massivo apelo publicitário a crianças, incentivando valores consumistas e materialistas, passando a ideia de que para ser alguém é necessário ter o produto anunciado.

Resultados econômicos positivos

Pesquisa da The Economist, que analisou os custos e benefícios da proibição da publicidade infantil, evidenciou que sua efetiva restrição traria benefícios decorrentes de uma população mais saudável, física e psicologicamente, com resultados econômicos positivos que variam entre R$ 61 e R$ 76 bilhões.

Assim, muito se estranha o fato de tanta produção e pesquisas baseadas em evidências não serem consideradas para conformação da opinião e decisão dos atuais gestores públicos.

Fim da programação infantil

Estranho e equivocado, ainda, é culpabilizar a regulação da publicidade infantil pelo fim da programação infantil na televisão aberta. Na verdade, a programação infantil sumiu da TV aberta pela mudança do modelo de negócio das próprias empresas de telecomunicação que escolheram utilizar o mesmo horário para programas destinados a um público mais abrangente, deixando seu conteúdo infantil para canais pagos e outras plataformas.

Além disso, o modelo comercial de programação para crianças foi radicalmente alterado pelo advento da internet e das mídias digitais, que apresentam verdadeiramente um desafio relacionado à proliferação de influenciadores mirins e que realizam trabalho infantil artístico para a promoção, na maioria das vezes velada, de produtos e serviços das mais diversas empresas.

Ministério deveria auxiliar na aplicação da lei

Nesse ponto, o Ministério da Justiça poderia contribuir sobremaneira para aplicação da lei já existente, coibindo práticas abusivas e ilegais por parte dos anunciantes que, erroneamente, acreditam que a internet é uma terra sem lei.

Nós já temos leis excelentes e reconhecidas mundialmente para proteção da criança: a publicidade infantil no Brasil já é ilegal!

Reconhecer isso não significa nem colocar a criança em uma suposta redoma, pois ela continuará a ter contato com publicidade -mas não aquela feita direta e especificamente a ela -, nem acabar com a publicidade de um produto ou serviço, pois todas elas continuam a existir.
Trata-se, apenas, de redirecionar essa comunicação comercial aos pais e mães, os verdadeiros responsáveis.

Em um debate recente promovido pela Senacon, ouvimos de uma representante da indústria que o fato das crianças serem alvo de publicidade infantil deveria ser algo natural, pois elas fazem parte do mundo.

Sim, crianças também fazem parte da sociedade, mas isso não significa que o mundo pode fazer tudo o que quiser com elas, inclusive violá-las e explorá-las comercialmente.

Negar a condição peculiar de desenvolvimento da infância é retroceder em séculos de desenvolvimento moral, humanístico e jurídico, que possibilitaram que crianças sejam consideradas sujeitos de direitos e protegidas de forma especial pela nossa legislação.

Proteger crianças não é excesso de regulação: é dever moral

Quando criança, eu também adorava assistir desenhos nos sábados de manhã. Isto, o Ministro Sérgio Moro e eu temos em comum. Contudo, tive o privilégio de ter acesso a uma TV aberta que, além de ter programas infantis altamente qualificados, não tinha sequer uma publicidade infantil.

Modelos como a TV Cultura e seus memoráveis programas como Rá-Tim-Bum, Castelo Rá-Tim-Bum, Glub Glub e Mundo da Lua não são somente possíveis, mas necessários para uma infância saudável e adultos mais conscientes.

Proteger crianças com absoluta prioridade não é excesso de regulação; é dever moral e constitucional de todos nós, especialmente de gestores públicos que devem colocar sempre as crianças em primeiro lugar. Esse sim é o modelo regulatório a ser seguido pelo Estado brasileiro.