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Privacidade de dados será alavanca para criatividade publicitária

Estúdio Rebimboca/UOL
Imagem: Estúdio Rebimboca/UOL
Gustavo "Mini" Bittencourt

28/01/2021 04h01

A associação de dados e criatividade tem sido um tema frequente nos círculos da publicidade e do marketing. A possibilidade de se criar campanhas e ações customizadas para micro segmentos (ou até mesmo indivíduos) é uma noção que faz brilhar os olhos de muitos profissionais da área, sejam eles de agências, marcas ou plataformas.

Embutidas nessa possibilidade estão as promessas da relevância (fazer chegar o conteúdo certo até as pessoas certas) e da eficácia (gerar o efeito desejado nessas pessoas). Deposita-se no domínio dos dados a esperança de cumprir com essas duas promessas. E isso tira, ao menos em tese, o peso da criatividade da equação: se, com os dados, sabe-se exatamente o que as pessoas querem e onde elas estão, talvez não seja necessário um esforço criativo tão intenso para chamar a atenção delas e provocar sua ação na direção pretendida.

Ao nosso redor estão, hoje, os resultados dessa equação incompleta. Apesar de agências, marcas e plataformas estarem de posse de cada vez mais dados e de ferramentas cada vez mais sofisticadas, as pessoas que são foco de suas campanhas vêm sendo soterradas com conteúdos genéricos mesmo quando direcionados exclusivamente a elas.

Um exemplo: pode até ser que duas pessoas de interesses e demografias muito diferentes recebam vídeos apropriados a seus interesses e recortes demográficos. Mas é bem possível que os vídeos sejam muito parecidos no uso de imagens, nos filtros de cores genéricos e especialmente nos textos recheados de constrangedores clichês.

Nos prometeram carros voadores e vídeos personalizados, mas continuamos presos no trânsito assistindo a toneladas de publicidade genérica. Data-driven, provavelmente. Mas, ainda assim, genérica.

Crença cega em dados atrofiou o músculo criativo de empresas?

Os contínuos esforços de ativistas e entidades para promover maior responsabilidade no uso dos dados de usuários de aparelhos e plataformas digitais busca resgatar e resguardar pilares básicos das democracias liberais, entre eles o respeito à privacidade e aos direitos humanos.

A revitalização da criatividade não é uma preocupação central nessa área, mas um efeito colateral. Para quem trabalha com publicidade e marketing, é válido pensar no impacto positivo que isso pode ter na forma como são pensadas as campanhas e ações.

É palpável o quanto a crença cega em dados e na tecnologia atrofiou o músculo criativo de muitas empresas quando se fala de comunicação —e isso fica claro quando vemos a quantidade de startups que desenvolvem produtos ou serviços "disruptivos", mas que são lançados com uma comunicação absolutamente genérica, desinteressante, apenas adicionando mais ruído a um ambiente digital já poluído.

É hora de imaginar futuros mais criativos (e os dados vão ajudar nisso)

A partir desse ponto de vista, um mundo de maior cuidado com os dados das pessoas pode ser também um mundo mais criativo.

A dificuldade de se obter ou usar os dados pessoais em campanhas pode se traduzir em um maior esforço dos profissionais em ir a campo e conhecer as pessoas de forma mais direta. Pode significar também campanhas menos padronizadas e mais ousadas no sentido de tentar uma conexão menos fria com seus públicos pretendidos.

Com um uso mais restrito dos dados, pode-se também imaginar que as marcas terão que testar mais hipóteses e hipóteses mais criativas na tentativa de refinar produtos, serviços e campanhas. É claro que esses rápidos exercícios projetivos têm um olhar otimista, mas vamos combinar que já estamos bem servidos de distopia. É hora de imaginar futuros mais criativos e interessantes e a privacidade de dados pode ser parte disso.

Diminuir limites para aflorar a criatividade

O professor de artes da Escola do Parque Lage, Charles Watson, costuma defender em seus workshops de Processo Criativo que todo profissional envolvido com criatividade depende de limites para produzir. Grandes artistas chegam a criar as próprias limitações quando não as têm naturalmente —trabalhar com apenas um tema, com apenas um material, dentro de um tempo específico, dentro de um espaço específico e assim por diante.

Essas limitações criam as paredes nas quais as ideias ricocheteiam e chocam-se umas nas outras. As sobreviventes desse procedimento costumam ser as obras que nos encantam e iluminam o mundo.

A luta pela privacidade de dados, portanto, é uma luta pela democracia, pela liberdade, pela cidadania, pelos direitos humanos.

Mas nada impede que ela também seja, colateralmente, um movimento que pode tornar a publicidade contemporânea mais criativa —e no melhor significado da palavra.