Camila Maia

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Reportagem

Leilão de energia vira campo de batalha, e governo recua diante de pressões

Depois de mais de um ano de discussão, o Ministério de Minas e Energia decidiu cancelar o leilão de reserva de capacidade previsto para junho e recomeçar a disputa do zero, com pressa para que o certame aconteça ainda em 2025. A decisão foi tomada para evitar um cenário ainda pior na guerra de liminares judiciais que tem dominado o noticiário da energia nas últimas semanas.

Mais do que isso, a dificuldade na realização de um único leilão, após sucessivas mudanças nas regras, evidencia o tamanho do desafio do governo em conciliar interesses distintos, mesmo em assuntos urgentes como a contratação de potência para evitar problemas no abastecimento no fim da década.

Evento mais esperado no setor de energia em 2025, o leilão de reserva de capacidade na forma de potência (LRCAP, em mais uma sigla do setor energético) teria a função de contratar geração flexível que possa ser despachada rapidamente pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) nos horários de maior demanda. Isso acontece principalmente no fim do dia, quando não há mais geração solar fotovoltaica, e o atendimento precisa contar com usinas de rápido acionamento para evitar apagões.

Uma nova consulta pública deve ser aberta em breve para que o leilão possa ser realizado neste ano, mas a guerra de poder dos bastidores deve continuar, com oposição de investidores de peso interessados em conseguir cada um "seu quinhão" - tomando emprestada uma expressão usada pelo próprio ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira.

Protagonizam a disputa empresas do setor de gás, como Petrobras, Eneva, Âmbar (o braço de energia da J&F dos irmãos Batista), o "rei do gás" Carlos Suarez, o setor de biocombustíveis, com apoio da bancada rural do Congresso, e ainda os donos de grandes hidrelétricas do país - para limitar a lista aos que disputariam efetivamente o LRCAP em junho, se não tivesse sido cancelado.

"Se não conseguem organizar um leilão, imagine uma reforma institucional do setor de energia", disse um executivo de uma empresa de energia sob condição de anonimato, se referindo às promessas do governo sobre a modernização do setor, discussão que se arrasta por diferentes governos, desde 2016.

Desde que assumiu a pasta, em janeiro de 2023, Silveira fala sobre a reforma do setor, ainda longe de acontecer, e sobre o leilão de reserva de capacidade.

Em 2021, o primeiro e único leilão do tipo foi realizado, voltado exclusivamente a termelétricas novas e existentes, com contratos que entram em vigor a partir de 2026. Naquela ocasião, a judicialização também afetou o resultado final.

Um novo leilão: flexibilidade e demanda expressiva

Um novo leilão tem sido discutido desde então, especialmente por conta do aumento da geração de energia elétrica por fontes intermitentes, como eólica e solar. O país saiu gradualmente de um cenário de sobreoferta de energia para um de potencial déficit de potência: no fim do dia, quando não há mais geração solar fotovoltaica, a demanda por eletricidade continua muito elevada, e é necessário acionar usinas flexíveis que possam garantir suprimento por algumas horas, antes de serem novamente desligadas até o dia seguinte.

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Essa flexibilidade é suprida ainda por hidrelétricas e, principalmente, por termelétricas mais caras disponíveis ao ONS, mas o operador já calculou que a partir de 2028 será preciso contar com usinas novas, já que a demanda continuará crescendo.

O LRCAP aconteceria em junho e especialistas apostavam numa contratação de 10 GW (gigawatts) a 15 GW de potência - ou seja, potencialmente mais potência do que a disponibilizada pela usina hidrelétrica de Itaipu, maior do mundo fora da China, e seus 14 GW. Seria um leilão muito grande, com 10 contratos diferentes, para usinas novas e existentes, começando desde 2025 até 2030.

A definição da demanda e sua alocação em cada tipo de produto (termelétricas a gás, biocombustíveis ou expansão de hidrelétricas) cabe ao governo, que considera para isso as necessidades apontadas pelo ONS, os cenários da EPE (a estatal de planejamento Empresa de Pesquisa Energética) e ainda políticas públicas (políticas de incentivo aos biocombustíveis ou à cadeia de gás, por exemplo, poderiam ser justificativas para priorizar uma ou outra fonte).

Tudo isso ajuda a explicar por que o leilão se tornou, nos bastidores, palco para uma guerra de poder e influência sobre o governo.

Essa mesma guerra de poder atrasou a definição das regras do leilão, originalmente projetado para agosto de 2024, e agora levou ao seu cancelamento, postergando novamente os prazos.

Prazos vencidos, adiamentos e um recomeço

Oficialmente, o debate sobre o LRCAP no governo começou em 8 de março de 2024, quando foi aberta uma consulta pública para discutir as regras do edital. A princípio, participariam do leilão termelétricas novas e existentes, sem restrição de combustível, além da ampliação de hidrelétricas, por meio da instalação de turbinas adicionais em algumas usinas antigas que foram construídas já com essa possibilidade.

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Alguns dias depois, em 21 de março, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, disse à Folha de S.Paulo que iria incluir baterias associadas a usinas renováveis no leilão.

Nos meses seguintes, Silveira deu declarações contraditórias sobre incluir ou não baterias, sempre insistindo que o leilão aconteceria em 2024. Em setembro, o discurso mudou, quando o governo passou a prever um leilão exclusivo para baterias, mas o ministro insistia que o LRCAP seria em 2024, ainda que não houvesse tempo para todos os ritos necessários. Um leilão de geração precisa de pelo menos seis meses para ser realizado, entre a consulta pública, o cadastramento dos interessados, a habilitação, a publicação do edital e a sessão pública da concorrência.

Em novembro, Alexandre Silveira admitiu pela primeira vez que o leilão seria em 2025, mas prometeu publicar as regras em 2024. A portaria com as diretrizes foi assinada em 31 de dezembro, mas foi publicada no Diário Oficial da União apenas em 2 de janeiro, contemplando termelétricas a gás natural, biocombustíveis e ampliação de hidrelétricas existentes.

A partir daí, houve mais idas e vindas, criando um ambiente propício a judicialização.

No dia 6 de janeiro, uma nova portaria criou produtos e expandiu os prazos dos contratos. Agora, seria possível contratar termelétricas existentes em 2028, 2029 e 2030. A mudança foi favorável à Eneva, que tem duas termelétricas (Parnaíba I e III) cujos contratos vencem em 2027, e ficariam de fora do leilão se não fosse a alteração.

Mais de um mês depois, em 10 de fevereiro, outra alteração. Ao publicar a sistemática do certame, como a fórmula de preços e ordem da disputa dos lotes, o MME alterou uma portaria anterior e reduziu o custo máximo de geração das usinas termelétricas elegíveis, saindo de algo perto de R$ 2.700 por MWh (megawatt-hora) para cerca de R$ 1.700 por MWh.

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Dessa vez, as reclamações vieram das usinas a óleo combustível, que estão trabalhando para converter suas máquinas a biodiesel. Como o combustível é consideravelmente mais caro que o gás, a redução de preço foi vista como uma forma de eliminar a fonte do certame.

Guerra de liminares

Aqui, vale um parêntese: no LRCAP de 2021, o governo tentou colocar um teto para o custo de geração, na época de R$ 600/MWh. Usinas muito mais caras entraram na Justiça, venceram o leilão, e confirmaram a vitória anos depois no Supremo Tribunal Federal (STF).

Amparados por essa decisão anterior, os geradores a biocombustível foram a Justiça e conseguiram suspender o teto do LRCAP de 2025. O MME, então, voltou atrás e manteve o preço anterior, de R$ 2.700/MWh.

A judicialização não parou por aí.

O custo de geração das usinas é calculado por meio do CVU, sigla para custo variável unitário (CVU), mas a sistemática do leilão usa uma fórmula que dá peso também para a flexibilidade das usinas, calculada por meio do fator 'a'. O objetivo dessa sistemática é obter o menor custo final ao consumidor.

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As usinas a gás tendem a ter CVU mais baixo, mas as usinas a biocombustível são mais flexíveis, e isso se traduz num fator 'a' mais eficiente.

Depois que o MME voltou atrás e subiu o teto a R$ 2.700 por MWh, a Eneva foi à Justiça e conseguiu liminar para retirada do fator 'a' do cálculo do produto de potência termelétrica.

Em 1º de abril, a Proteste, associação de defesa ao consumidor, conseguiu na Justiça uma liminar para suspender o leilão até que o fator 'a' fosse discutido em consulta pública.

Diante de tantas idas e vindas, o governo julgou melhor cancelar o leilão e recomeçar do zero.

Em nota, o MME confirmou que a disputa judicial sobre o certame motivou seu cancelamento, e afirmou que uma consulta pública deve ser aberta "em breve" para discutir a metodologia, inclusive o fator 'a', que foi pensado para garantir o menor custo ao consumidor. A pasta assegurou ainda que os prazos devem ser definidos para que o leilão aconteça ainda em 2025.

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