Um em cada quatro lares brasileiros vive em pobreza energética

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Um quarto das famílias brasileiras gasta mais de 10% da renda com energia elétrica e gás. O número, revelado pelo recém-lançado Observatório Brasileiro de Erradicação da Pobreza Energética (Obepe), escancara um cenário estrutural de desigualdade: mesmo com 99,8% dos domicílios conectados à rede, o acesso pleno à energia continua fora do alcance de milhões de brasileiros.
O patamar de 10% de comprometimento da renda com energia é uma referência reconhecida internacionalmente para caracterizar situações de pobreza energética. No Brasil, esse problema tem recorte definido: afeta principalmente famílias do Norte e Nordeste, chefiadas por mulheres e por pessoas negras ou pardas. Em estados como Alagoas, o índice chega a 48% das residências.
Mesmo entre os beneficiários da tarifa social, a privação é concreta. Segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), 2,2 milhões de famílias consomem até 30 kWh por mês — energia suficiente apenas para uma geladeira e uma lâmpada.
"Apesar de faltar muito pouco para a universalização da energia, o Brasil ainda tem famílias em condição de pobreza energética. Famílias de menor renda têm padrão de consumo semelhante ao de países como Marrocos, enquanto as de alta renda se equiparam ao Japão", afirmou Mariana Weiss, analista da da Superintendência de Estudos Econômicos e Energéticos (SEE) da EPE, durante evento de lançamento do Obepe. "É uma falsa universalização: as pessoas estão conectadas, mas não têm acesso real e suficiente", concluiu.
Problemas que vão além da fatura
Os dados do Obepe mostram que 1,3% dos domicílios brasileiros não têm eletricidade em tempo integral, o que compromete segurança alimentar, uso de equipamentos médicos e bem-estar térmico.
Outro ponto crítico é o modo como as famílias cozinham. Mesmo com acesso ao gás, 5 milhões de domicílios utilizam biomassa (lenha, carvão ou resíduos) como principal fonte, e outros 800 mil cozinham exclusivamente com ela. O dado é ainda mais relevante porque 56% desses lares são de baixa renda, segundo a EPE.
Governo promete medidas, mas desigualdade persiste
O lançamento do Obepe ocorre no momento em que o governo federal prepara duas medidas provisórias com impacto direto sobre a pobreza energética.
A primeira, conhecida como MP da reforma do setor elétrico, propõe a gratuidade para os primeiros 80 kWh mensais de energia elétrica para famílias com renda de até meio salário mínimo per capita inscritas no CadÚnico.
"Hoje, consumidores de baixa renda pagam um percentual da tarifa da distribuidora. Se vivem em estados com tarifas altas, pagam mais. Nossa proposta é unificar isso e criar uma tarifa social mais justa", explicou Fernando Colli Munhoz, secretário-executivo adjunto do Ministério de Minas e Energia.
A segunda MP amplia o alcance do programa que subsidia o botijão de gás liquefeito de petróleo (GLP), o gás de cozinha, por famílias de baixa renda.
As agendas sociais são prioridade no Palácio do Planalto, ainda que esbarrem em resistência no Congresso e possam ser vistas como oportunistas, enquanto o governo lida com a crise da fraude do INSS.
Ferramenta para orientar políticas públicas e ODS
O timing de divulgação do Obepe, porém, não tem relação direta com o contexto político. O observatório foi desenvolvido pela EPE em parceria com o Ministério de Minas e Energia (MME), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e a consultoria MRC.
A plataforma reúne mais de 260 métricas, cruzando dados de consumo, renda, posse de equipamentos e condições habitacionais com indicadores como IDH e temperatura média. As informações vêm de bases como PNAD, POF, Cadastro Único, Aneel, ANP e INMET.
Segundo a EPE, o objetivo do observatório é oferecer um instrumento público, técnico e interativo que ajude o poder público a mapear com precisão os bolsões de pobreza energética no país. A ferramenta está alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, especialmente os que tratam de energia limpa, erradicação da pobreza e redução das desigualdades.
Para o diretor do Departamento de Universalização do MME, André Dias, a plataforma é um divisor de águas para o setor: "Hoje, consigo cruzar exclusão energética com IDH e outros 45 indicadores. Isso nos dá ferramentas para fazer política pública com mais precisão", afirmou.
O desafio agora será garantir a governança desses dados. "Precisamos definir quem atualiza, onde essa base fica, como manter ela institucionalizada e atualizada com novas fontes, como dados da Aneel, da ANP e do Cadastro Único. E, claro, precisamos também garantir financiamento para que o observatório continue útil para o planejamento não só de hoje, mas do futuro", apontou Carla Achão, superintendente de Estudos Econômicos e Energéticos da EPE.
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