Camila Maia

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Reportagem

Congresso derruba leilão e trava transição no setor elétrico

A derrubada dos vetos presidenciais à Lei 15.097, conhecida como marco legal da eólica offshore, colocou em xeque o planejamento energético do país, aprofundou as distorções causadas pelos "jabutis" inseridos no texto original e pode levar ao cancelamento do leilão de reserva de capacidade previsto para este ano, para contratar termelétricas e hidrelétricas que só seriam acionadas quando necessário. Entre os principais impactos esperados estão o aumento do corte de geração de renováveis como eólica e solar, o encarecimento da conta de luz e a inviabilização de investimentos em fontes que hoje são prioritárias para o avanço da transição energética.

O veto mais problemático foi o que atingia o artigo que obrigava o governo a compensar a demanda não contratada em um ano nos anos seguintes, no caso das termelétricas previstas na Lei 14.182/2021 — a mesma que viabilizou a privatização da Eletrobras. O dispositivo, agora em vigor, determina que o volume total de 8 GW em térmicas inflexíveis (precisam gerar 70% do tempo, havendo ou não demanda) seja contratado a qualquer prazo, abrindo espaço para o desenvolvimento de gasodutos no interior do país bancados pela conta de luz.

Também foi derrubado o veto ao trecho que obriga a contratação de 4,9 GW em pequenas centrais hidrelétricas (PCHs), usinas com menos de 50 MW de capacidade, distribuídas por região, via energia de reserva. Como essa modalidade não depende da demanda das distribuidoras, a lei cria um compromisso unilateral do governo com a contratação, cujo custo será repassado integralmente ao consumidor por meio de encargos. Ainda foram reinseridos trechos que determinam a contratação de hidrogênio líquido a partir do etanol e de eólicas no Sul.

Aumento dos cortes de geração

Para além dos custos — grandes consumidores de energia estimam um impacto de pelo menos R$ 200 bilhões — o maior problema é o desalinhamento completo com o que o sistema precisa. O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) publicou nesta semana um estudo que projeta corte de renováveis de até 20 GW durante o dia a partir de 2029, 96% deles por razão energética, ou seja, quando há mais oferta do que demanda. A ampliação da contratação de térmicas inflexíveis agrava o quadro do chamado "curtailment" (termo em inglês para os cortes, que são definidos pelo ONS na operação).

Hoje, o sistema já enfrenta cortes frequentes, especialmente no Nordeste, onde a geração cresceu quase 50% em dois anos. O relatório do ONS indica que mesmo com os reforços previstos na transmissão, o excesso de oferta nos períodos diurnos continuará exigindo cortes. No pior cenário, o curtailment pode alcançar 32 GW, quase o dobro da capacidade total instalada dos grandes parques de geração solar, que somam 18 GW aproximadamente. As usinas solares podem ser obrigadas a cortar até 20% da sua geração, e as eólicas, até 10%.

Nos últimos anos, os cortes de geração já custaram cerca de R$ 2 bilhões às renováveis, e a conta deve crescer nos próximos anos, mesmo com investimentos em transmissão e infraestrutura.

Leilão em xeque

A expectativa era de que o leilão de reserva de capacidade de 2025 ajudasse a mitigar parte desses efeitos, contratando térmicas flexíveis e usinas hidrelétricas que poderiam operar sob demanda, recebendo uma receita fixa para estarem disponíveis ao operador. Mas a obrigatoriedade de contratação de térmicas inflexíveis e de PCHs imposta pela nova legislação anula essa lógica. O governo não vai contratar em dobro. Como resultado, a tendência é que o leilão não ocorra, comprometendo a previsibilidade dos investimentos.

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A situação ainda pode piorar. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, já indicou que pretende convocar uma nova sessão do Congresso para votar os vetos que ficaram pendentes, entre eles o artigo que trata do transporte de gás para as térmicas do interior. A proposta reduziria o volume para 4,25 GW, mas criaria uma fórmula de precificação que inclui o custo do gás entregue à central de geração, viabilizando o leilão mesmo nas regiões sem infraestrutura.

Esse tema se soma a outro em discussão: o pass-through do transporte de gás, defendido por parte do governo e da indústria no contexto do leilão de reserva de capacidade. A ideia é que o custo do transporte do gás não faça parte do lance das térmicas no leilão, mas seja repassado diretamente ao consumidor, como um encargo. A medida é vista por especialistas como um subsídio cruzado, e poderia resolver o impedimento à contratação dos 8 GW de térmicas da lei da Eletrobras sem precisar que o veto da lei da eólica offshore seja derrubado.

Nova MP

Com a "faca no pescoço", o governo avalia editar uma nova medida provisória para tentar corrigir as "deficiências" do projeto sancionado com os vetos derrubados. O senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), líder do governo no Congresso Nacional, disse hoje que o texto da MP está sendo construído em articulação com o ministro da Casa Civil, Rui Costa, e com a presidente do PT, Gleisi Hoffmann. O conteúdo ainda será negociado com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. A proposta deve corrigir, por exemplo, a obrigação de contratação das PCHs.

No mercado, o grande receio é que, ao tentar corrigir a situação, uma nova MP acabe piorando tudo, dando oportunidade para mais emendas que atrapalhem o planejamento e criem subsídios.

As incertezas também valem para a Medida Provisória 1.300, que busca modernizar o setor elétrico e criar regras mais claras para a operação. O temor no Ministério de Minas e Energia é que o Congresso aprove a MP apenas com os trechos que interessam a setores com maior poder de lobby, ampliando ainda mais as distorções e insegurança jurídica.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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