Por que estamos desperdiçando energia renovável no Brasil

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Você já ouviu falar em curtailment? O nome é estranho, mas o problema é real e afeta tanto a conta de luz quanto a expansão das fontes renováveis. O termo em inglês, que não tem uma tradução oficial no setor de energia além de "corte", significa basicamente o seguinte: energia que poderia ser gerada, mas não é, porque não há como usá-la por falta de demanda ou espaço na rede de transmissão para levá-la de um ponto a outro.
A situação pode parecer absurda: afinal, por que desperdiçar energia limpa, renovável e já disponível?
E é essa a realidade não só no Brasil, mas em todos os países com inserção elevada dessas fontes intermitentes, que não podem ser ligadas quando necessário, já que ninguém tem controle sobre sol ou vento.
As fontes eólica e solar não são as únicas afetadas, o problema também afeta hidrelétricas e, em alguns casos, até térmicas, que poderiam despachar eletricidade para garantir a segurança do sistema, são cortadas. Para as fontes renováveis, o impacto proporcionalmente é maior, ainda mais porque essas usinas não têm como estocar sua produção.
O fenômeno do curtailment ganhou destaque no Brasil após o apagão de 15 de agosto de 2023, que escancarou as fragilidades da operação do sistema.
As investigações do evento pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) concluíram que o desempenho real das renováveis em momentos críticos era muito diferente do previsto nos modelos matemáticos fornecidos pelos empreendedores. O evento foi um marco para o debate sobre confiabilidade, escoamento e estabilidade da rede elétrica brasileira.
Desde então, o tema é o principal problema das renováveis, que calculam prejuízos da ordem de R$ 2 bilhões acumulados desde então pela frustração da geração.
Ainda sem solução
O cenário é complexo porque os estudos mostram que os cortes devem aumentar nos próximos anos, mesmo com aumento das obras em transmissão de energia para resolver os gargalos da rede que limitam a capacidade de escoamento das renováveis. As usinas pedem ainda que os cortes sejam ressarcidos via encargo, que seria cobrado dos consumidores — pagando aí por uma energia que não consumiram.
Ontem (26/06), o ONS, que é o órgão responsável pela operação do sistema elétrico, apresentou resultados de um estudo da flexibilização dos limites de transmissão de energia de um ponto a outro do país, numa tentativa de aumentar o envio de energia do Nordeste ao Sudeste nos próximos meses, quando começa a "safra dos ventos", período de julho a setembro em que venta mais e as eólicas produzem muita eletricidade.
Os estudos, contudo, foram decepcionantes, já que a capacidade de envio de energia liberada foi apenas de 1,5 GW, considerada insuficiente, e ainda apenas no período noturno. Durante o dia, quando acontecem mais cortes por causa do aumento da geração solar, a rede está tão "cheia" com a energia solar que não tem espaço para ser liberado.
Outras medidas estão sendo estudadas, mas o operador não tem prazo para concluir as análises tão complexas. Isso significa que os cortes vão crescer nos próximos meses.
Renováveis em alta, mas sem consumo e transmissão
As fontes renováveis cresceram muito nos últimos anos, num ritmo que não foi acompanhado pela demanda nem pela infraestrutura da rede.
Só o Nordeste passou de 21,1 GW em usinas eólicas e solares centralizadas em 2021 para mais de 40 GW em 2025, considerando apenas usinas de grande porte. Em todo o país, a potência instalada dessas fontes, contando também a geração distribuída (dos painéis solares e pequenas usinas) cresceu em 30 GW desde agosto de 2023, chegando a 90 GW.
A oferta cresceu muito mais que a demanda. Em muitos horários do dia, especialmente entre o final da manhã e o início da tarde, há literalmente energia sobrando. Mas o sistema precisa operar com estabilidade, e a rede não dá conta de transmitir tudo ao mesmo tempo. A solução, muitas vezes, é cortar a geração de algumas usinas.
A chamada MMGD (micro e minigeração distribuída: pequenos sistemas, em sua maioria solares, instalados em telhados, comércios e propriedades rurais) ainda cresce em ritmo muito acelerado, e aumenta o desafio do ONS. Como não faz a gestão desses sistemas, não pode limitar sua geração.
Assim, quando há energia demais na rede, quem paga a conta são os grandes geradores, que veem sua produção reduzida. O ONS já alertou que daqui alguns anos, se a MMGD continuar crescendo neste ritmo, pode nem ter alternativas para cortar a geração, já que há muita energia que está "na base", são as usinas inflexíveis, que precisam gerar mesmo se não houver demanda para elas.
O ONS publicou uma análise técnica que aponta que, se fosse possível cortar também a MMGD ou pelo menos compensar seus efeitos de alguma forma, os cortes nas usinas centralizadas poderiam ser reduzidos em até 50%.
O Ministério da Fazenda enviou recentemente um ofício à Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) sugerindo que adote mecanismos para que a MMGD arque com parte proporcional do impacto, mesmo que os cortes não ocorram fisicamente, mas sim por meio de ajustes nos créditos desses consumidores.
A proposta, no entanto, esbarra em desafios jurídicos e regulatórios, já que o sistema de compensação de energia elétrica foi previsto em lei e não prevê esse tipo de ajuste.
Canivete suíço
Há ainda quem veja nas baterias uma solução para o curtailment. Essas tecnologias têm sido chamadas de "canivete suíço" do setor elétrico, já que oferecem múltiplas funções: armazenam energia, ajudam a estabilizar a rede e podem fornecer eletricidade em horários de pico.
Mas, apesar do potencial, elas ainda não são uma solução viável em larga escala no Brasil. A tecnologia é recente, não conseguiria sozinha resolver o problema, e ainda não temos regras para que possam ser remuneradas de forma adequada. Estamos atrasados em relação a países como o Chile, que tem menos recursos naturais, mas já integra baterias à sua geração solar.
Vale lembrar que o Brasil tem uma vantagem única: nossas hidrelétricas com reservatórios funcionam como baterias naturais, capazes de armazenar energia e modular a geração ao longo do tempo. Mas até elas vêm sendo impactadas pelo curtailment, especialmente quando há sobra de geração solar e eólica e restrição na rede.
O desafio não é trivial. A integração de renováveis exige um nível de engenharia sofisticado para garantir que a energia saia de onde é gerada e chegue a quem precisa dela, com estabilidade. Isso demanda reforço na transmissão, novos critérios operacionais e regulação atualizada, além de um planejamento que considere, de forma realista, o crescimento acelerado da geração limpa.
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