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Carlos Juliano Barros

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Pandemia rouba sono, mas trabalho é vilão histórico das noites mal dormidas

01/06/2021 04h00

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Se você é mais um dos que literalmente perdeu o sono nesta pandemia, assim como este colunista, seja bem-vindo a um clube que não para de crescer.

Uma pesquisa recente com 1.600 brasileiros espalhados por 24 estados mostrou que 55,1% dos entrevistados relataram dificuldades para dormir, desde que a covid-19 passou a dar as cartas sobre como nos relacionamos com o trabalho e com a própria vida.

"A pandemia agravou a ansiedade e o estresse, e pôs sobre a gente a incerteza", explica Monica Levy Andersen, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretora técnica do Instituto do Sono, responsável pelo estudo. "E a incerteza gera medo, que é o pior inimigo para o sono", complementa a pesquisadora.

Agora, justiça seja feita: quando falamos de noites mal dormidas, é preciso deixar claro que o coronavírus não é o principal vilão dessa história.

A verdade é que a privação do sono é um projeto antigo e altamente bem-sucedido, mas particularmente exitoso de algumas décadas para cá. O principal motivo soa até como discurso motivacional: incrementar a performance no trabalho. Que o digam, por exemplo, o fundador da Alibaba - Jack Ma - e o governador de São Paulo, João Doria.

Magnata chinês e criador da principal rival da Amazon no e-commerce, Ma é um entusiasta do regime 9-9-6: expedientes que se estendem das nove da manhã às nove da noite, por seis dias por semana. Tudo em nome da produtividade.

Já o mandatário paulista também é célebre pelo culto ao trabalho duro, sem parar. Basta recordar alguns de seus slogans de campanhas eleitorais, como "Acelera" e "João Trabalhador". Não por coincidência, Doria já encheu a boca inúmeras vezes para dizer que quase não precisa dormir, como se isso fosse sinal de preguiça - ou fraqueza.

Eternamente à disposição

Num mundo em que não só produtos, mas também seres humanos, têm de estar à disposição 24 horas por dia, sete dias por semana, o sono só pode mesmo desempenhar o papel de aberração do sistema. Por isso, superar o imperativo fisiológico de repousar é tido como uma demonstração de força - uma virtude a ser perseguida.

Não à toa, o ensaísta americano Jonathan Crary abre o seu ótimo "24/7: Capitalismo Tardio e os Fins do Sono" com a parábola do pardal de coroa branca, espécie que tem o costume de fazer longas migrações, do Alasca ao México.

Há algum tempo, o pássaro vem chamando a atenção do Pentágono, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos, por uma habilidade ímpar: voar por sete dias ininterruptos, sem dormir. Intrigados, cientistas americanos têm estudado o cérebro do pardal com o objetivo de criar um soldado com a mesma capacidade de não pregar os olhos. Quer maior imaginário de força do que o de um militar incansável e que não dorme?

O livro de Crary traz dados oficiais bem ilustrativos sobre o que ele chama de "incursões regulares contra o tempo de sono". Ao longo do século 20, os americanos passaram a dormir cada vez menos. Se nas primeiras décadas as pessoas descansavam dez horas em média à noite, nos últimos anos esse número já havia despencado para seis horas e meia.

A ideologia que fez a necessidade de dormir ser enxergada com certo desdém - quer dizer, como perda de tempo a ser otimizada - também confere ao sono um status de esporte de alto rendimento. O mantra, nesse caso, é o da eficiência.

Não é de se estranhar, portanto, que boa parte dos pacientes que procuram o Instituto do Sono, principal referência do assunto no Brasil, estejam justamente interessadas em dormir menos - e não mais, como se poderia pensar a princípio.

"As pessoas geralmente perguntam: como eu faço para reduzir meu tempo de sono e fazer tudo o que eu quero?", conta Monica Levy Andersen. "E eu respondo: por que você nunca me pergunta 'como eu faço para dormir melhor'?"

Internet: interatividade e ansiedade

O sono é a última fronteira do mundo do trabalho, afirma Jonathan Crary em seu livro. Nesse sentido, é inquestionável o protagonismo da internet na armação da bomba de ansiedade que nos impede de dormir para nos tornar disponíveis o tempo todo. "É a atividade que mais mudou a nossa qualidade de sono. O fogo não fez isso, a energia elétrica não fez isso", resume Monica Levy Andersen.

Historicamente, tanto o fogo quanto a eletricidade ampliaram os limites impostos pela noite e expandiram a vigília, ou seja, o tempo que as pessoas poderiam passar acordadas, explica a diretora do Instituto do Sono. Mas a internet mudou essa discussão de patamar.

A essa altura, você deve estar pensando naquela história dos problemas gerados pela exposição à luminosidade das telas do smartphone, correto? Mas não é aí que mora o real perigo. A grande virada proporcionada pela internet é o estímulo infinito à interatividade.

Quando você pega o celular no criado mudo e responde aquele último e-mail de trabalho antes de dormir, inevitavelmente aproveita para adiantar uma ou outra tarefa pendente. Na melhor das hipóteses, passa o olho pelo noticiário, dá uma espiada nas redes sociais ou pesquisa os presentes dos aniversários que estão para acontecer.

Para cada resposta fornecida pela internet num espaço de tempo cada vez mais enxuto, os receptores do cérebro são presenteados com dopamina. Quando uma expectativa é atendida, a recompensa é o prazer - o que leva o cérebro não só a ficar agradecido, mas principalmente a querer mais. Qualquer semelhança com o mecanismo de funcionamento das drogas não é mera coincidência.

Mesmo para quem não menospreza a importância do sono, convenhamos que esta é uma época desafiadora para acomodar a cabeça no travesseiro. Mas, se a pandemia ficará para trás num futuro não tão distante, o mesmo não se pode dizer da organização do trabalho que enxerga o sono como um entrave a ser vencido.