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Carlos Juliano Barros

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Como a inflação pode agravar a já crescente obesidade entre terceirizados

O peso das pessoas pode estar se transformando em um indicador de status no mercado de trabalho - Getty Images
O peso das pessoas pode estar se transformando em um indicador de status no mercado de trabalho Imagem: Getty Images

12/10/2021 04h00

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Este texto é fruto de um despretensioso exercício de observação iniciado há alguns meses.

Toda vez que entro em um prédio corporativo, procuro reparar na incidência de obesidade entre terceirizados nos serviços de faxina e vigilância.

E a frequência com que encontro trabalhadores e trabalhadoras consideravelmente acima do peso tem chamado minha atenção.

Ainda que a amostragem não siga padrões científicos rigorosos, há razões de sobra para acreditar que minha hipótese caminhe na direção correta: o peso das pessoas pode estar se transformando em um indicador de status no mercado de trabalho.

O papo tem a ver com a explosão do consumo de alimentos ultraprocessados nas últimas duas décadas no país, sobretudo pelos mais pobres.

Estamos falando de miojo, pão com embutidos e bolachas recheadas. E não podemos nos esquecer das bebidas atoladas em açúcar, como refrigerantes e sucos de caixinha.

Se a demanda por ultraprocessados já vinha em alta há um bom tempo, com o estouro da inflação que vem tornado produtos in natura cada vez menos acessíveis, a paisagem que desponta no horizonte não parece das mais promissoras em termos de saúde pública.

Indo direto ao ponto: é bem possível que na base da pirâmide social se multipliquem os casos de obesidade. Uma verdadeira epidemia que já atinge mais de um quarto da nossa população acima dos 20 anos.

Obesidade: uma questão de classe

De fato, não existem estudos que atestem o avanço da obesidade especificamente entre terceirizados. Porém, há evidências abundantes associando o sobrepeso a perfis de baixa renda, caso de faxineiros e vigilantes.

"Se você pegar os dados do IBGE, você vai ver que, a despeito da carga de obesidade ainda ser maior nos indivíduos mais ricos, há uma tendência clara de que isso se desloque para os mais pobres", analisa Rafael Claro, professor do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Vem num ritmo tão acelerado que, pouco a pouco, a carga vai acabar concentrada neles", complementa o pesquisador.

Existem diversas explicações para essa inversão - umas mais, outras menos óbvias.

Trabalhadores de baixa renda, como os terceirizados, geralmente perdem muitas horas por dia em deslocamento. Isso reduz o tempo e a disposição para preparar refeições nutritivas, sem falar na impossibilidade de praticar exercícios físicos. No caso das mulheres, então, há ainda a jornada prolongada em casa.

Além disso, no ambiente de trabalho, terceirizados não contam com benefícios comuns a funcionários diretos, como vale-refeição. Muitas vezes, sequer têm acesso à área da copa para guardar a marmita na geladeira ou esquentá-la em um micro-ondas.

A alternativa, então, é abrir mão de uma refeição digna do nome e recorrer a produtos práticos e capazes de despistar a fome, porém, recheados de calorias.

Por fim, obviamente, vem a questão da grana. Num passado relativamente recente, o acesso a ultraprocessados representava quase um privilégio. "Ter em casa um tubo mesmo que vazio de batata Pringles nos anos 1980 e 1990 mostrava quem a pessoa era na escala social", diz Rafael Claro, numa verdade com fundo de brincadeira. Se antes o preço era proibitivo, hoje ele é convidativo.

"O ultraprocessado cresce em todos os níveis sociais, mas cresce com mais intensidade na camada mais pobre", afirma o pesquisador da UFMG. "Só que a bolacha consumida pela população mais pobre não é aquela com sete cereais integrais. É a de pior qualidade, com resíduos de gordura trans e alto teor de açúcar", ressalva.

Inflação e obesidade

Aí é que entram os efeitos perversos da alta generalizada de preços que tanto tem assustado qualquer pessoa atenta às gôndolas nos supermercados.

Arroz, feijão e carnes, por exemplo, tiveram um aumento superior a 40% de um ano para cá. Disparada do dólar e desorganização de cadeias produtivas globais por causa da pandemia contam parte do drama da inflação.

Mas o que interessa por ora é entender como isso repercute no bolso - e na balança.

Os preços de alimentos in natura são mais sensíveis às oscilações de mercado do que os de ultraprocessados. Em geral, grandes indústrias têm mais margem de manobra para segurar os repasses da inflação.

Isso ocorre porque o alimento propriamente dito nem sempre é um item decisivo na composição do valor final cobrado do consumidor por um produto ultraprocessado.

"Às vezes, diminuindo o investimento em marketing ou mudando a cadeia de fornecedores, é possível manter o preço", explica o professor da UFMG. Em outras palavras, quando a saca de arroz dispara, o mesmo não necessariamente acontece com o pacotinho de macarrão instantâneo - que, por sinal, não custa menos de R$ 1,50.

Espremidos pela inflação, a saída encontrada por boa parte dos brasileiros é buscar alimentos de maior densidade energética que caibam no orçamento. E é aí que o ultraprocessado faz a festa.

Em tempo, uma observação que não chega a ser curiosa: o agravamento da obesidade entre profissionais de baixa renda - como os terceirizados - acontece ao mesmo tempo que o espectro da fome volta a assolar quem não consegue arrumar nem mesmo um trabalho precário para comprar comida.