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Os robôs do Google vão cumprir a promessa de nos livrar do trabalho duro?
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Um anúncio feito no último dia 19 de novembro pela X, a divisão de robótica do grupo que controla o Google, deixou os aficionados em tecnologia em polvorosa e tornou reais cenas antes exclusivas de desenhos animados ou filmes de ficção científica.
Publicado no blog da X, o comunicado diz que, depois de anos de pesquisa, a empresa vem finalmente testando em seus escritórios e refeitórios mais de 100 modelos de "everyday robots" (robôs de todo dia, numa tradução livre). O grande diferencial das máquinas é a capacidade de realizar atividades comezinhas, como separar o lixo e arrumar a mesa.
De fato, o principal desafio da inteligência artificial (IA) nunca foi o de dar conta de tarefas complexas - jogar xadrez ou fazer cálculos avançados são os exemplos clássicos. Historicamente, o calcanhar de Aquiles tem sido criar equipamentos autômatos com a habilidade de interagir com objetos e dar uma mãozinha na trabalheira ordinária, como passar um reles cafezinho.
É justamente esse conhecido paradoxo da IA - "as coisas difíceis são fáceis e as coisas fáceis são difíceis" - que a controladora do Google se propõe enfim a superar. Imagine o salto de autonomia e de qualidade de vida que robôs podem proporcionar a idosos com mobilidade reduzida, sugere Hans Peter Brøndmo, o chefe de robótica da X.
Realmente, não há como não se empolgar com a paisagem futurista ainda distante, mas já não impossível, de máquinas ao lado de pessoas para o que der e vier. Por sinal, uma das novelas mais longas e mal contadas da história.
Promessas não cumpridas
O projeto "everyday robots" é mais um capítulo de uma narrativa que há séculos encanta pessoas de todos os espectros ideológicos, da esquerda à direita: a promessa de que o progresso tecnológico vai nos libertar do trabalho duro e, aparentemente, desnecessário.
A melhor tradução desse sonho que a humanidade persegue desde a era Moderna - porque nem sempre o trabalho foi uma preocupação tão central na vida das pessoas! - talvez seja o conceito de "ócio criativo", título de um best-seller do sociólogo italiano Domenico de Masi.
Como se pode depreender, de Masi é um entusiasta da ideia de que o desenvolvimento tecnológico abriria alas para que pudéssemos dedicar nosso tempo a atividades intelectuais inovadoras e inspiradoras.
Aqui é importante fazer uma digressão, antes que acusem apressadamente este colunista de "neoludista" - uma referência ao movimento do início da Revolução Industrial que pregava a destruição das máquinas em reação à miséria e ao desemprego.
Não se trata de defender o regresso a um passado supostamente idílico em que vivíamos contentes, cantarolando à beira dos rios enquanto esfregávamos nossas roupas com as mãos. Como diversos outros equipamentos, as máquinas de lavar são, claro, uma benção - mesmo que para muita gente, ainda hoje, não passem de um luxo distante.
O ponto é que, apesar de todo o impressionante progresso científico e tecnológico, a mais ambiciosa promessa da Modernidade não foi cumprida. Não estamos trabalhando menos, nem deixando de fazer tarefas penosas, para enfim curtir a vida. Quer dizer, isso até pode ser verdade para um punhado de profissionais bem remunerados e altamente qualificados. Mas nem de longe é a realidade da esmagadora maioria das pessoas.
Tempo para cuidar de casa e da família
Um dos críticos mais perspicazes da forma como a humanidade se arranjou em torno do trabalho é o filósofo franco-austríaco André Gorz. Espécie de guru intelectual do movimento de maio de 1968, ele defendia uma reorganização da sociedade para que as pessoas tivessem mais tempo para limpar a casa, cuidar da família e zelar pelo bairro.
Gorz defendia já naquela época o pagamento de uma renda básica universal para que todas as pessoas realmente se dedicassem ao chamado "trabalho reprodutivo". Inclusive, essa seria uma alternativa aos serviços públicos prestados pelo Estado - mas não uma alternativa via mercado, mediante a compra de serviços prestados por profissionais geralmente precarizados.
A proposta de Gorz é tão simples quanto revolucionária: talvez precisemos apenas de tempo para lidar com as tarefas do dia-a-dia às quais a humanidade sempre se dedicou, mas que tão avidamente tentamos repassar a outros hoje em dia. Ou seja, em vez de pagar uma babá, eu cuido das crianças. Em vez de contratar uma faxineira, eu limpo a minha privada.
Nesse sentido, os robôs do Google são mais do que bem-vindos para dar uma força, claro. Mas em nada vão inovar se servirem apenas para terceirizarmos responsabilidades básicas. Ou para ganharmos tempo não para curtir a casa ou a família - mas para, vejam só, trabalhar ainda mais.
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