'Ócio criativo': teoria de Domenico De Masi é charmosa, mas tem limitações

O falecimento do sociólogo italiano Domenico De Masi, anunciado no último sábado (9), trouxe às páginas dos jornais resumos apressados do conceito de "ócio criativo" — título do best-seller lançado na já longínqua década de 1990 e responsável pela projeção do pensador mundo afora.
Em geral, a teoria de De Masi é reduzida a uma espécie de ode ao tempo livre, necessário ao estímulo da "criatividade". Num novo mundo remodelado pelo avanço da globalização, pelo crescimento do setor de serviços e pela explosão das tecnologias digitais, o futuro pertenceria justamente aos trabalhadores tidos como criativos, livres das amarras maçantes e burocráticas da era industrial.
Não é que esse grosseiro resumo esteja propriamente errado. O ponto é que ele deixa de jogar luz sobre algumas limitações importantes da teoria de De Masi, charmosa e otimista como seu criador. A primeira delas é a polêmica noção de "pós-industrial", ideia essencial para compreender o pensamento do sociólogo italiano.
À primeira vista, ela parece mesmo irrefutável. Afinal, a indústria tal qual a concebemos em nosso inconsciente coletivo, com suas barulhentas linhas de produção enferrujadas e suas chaminés cheias de fumaça, já não responde há décadas pelo grosso da atividade econômica e pela maior parte dos empregos.
Agora pense numa loja de fast food qualquer, como fez o sociólogo norte-americano George Ritzer em seu clássico "A McDonaldização da Sociedade". Um funcionário tira o pedido, outro frita o hambúrguer, um terceiro monta o sanduíche. Até o consumidor, na fila do pedido, entra nessa cadeia de comandos. Difícil enxergar uma lógica mais industrial do que essa.
Ou tome então um exemplo ainda mais atual, o dos entregadores e motoristas de aplicativos. A remuneração por tarefas simples, em prazos mensurados na ponta do cronômetro, certamente fazem Frederick Taylor — precursor do capitalismo industrial nos Estados Unidos e pai da chamada "administração científica" do trabalho — se contorcer de felicidade no túmulo a cada corrida concluída com sucesso.
O segundo ponto problemático da teoria do ócio criativo é uma perigosa tendência à generalização, como se toda e qualquer atividade repetitiva estivesse fadada à substituição pelas máquinas, e como se as funções criativas pudessem estar realmente ao alcance de qualquer pessoa, desde que devidamente capacitada.
Nesse ponto, de forma até contraditória ao final do livro, De Masi afirma que trabalhos criativos serão considerados bens raros e luxuosos na sociedade pós-industrial, assim como outros artigos cada vez mais escassos — é o caso do silêncio e dos ambientes "ecologicamente saudáveis".
Se supostamente caminhamos para uma sociedade de tempo livre, em que as pessoas finalmente poderão trabalhar menos graças ao avanço tecnológico, soa no mínimo como um ruído a constatação de que "trabalhos criativos" se converterão em um luxo.
O curioso é que, apesar dessa contradição, De Masi parece ter acertado em cheio: quase três décadas após a publicação de "O Ócio Criativo", vivemos em uma sociedade de renda concentrada e em um mercado de trabalho altamente "polarizado", para citar a análise do renomado pesquisador David Autor, do MIT (Massachusetts Institute of Technology).
De um lado, uma pequena minoria com empregos criativos e bem remunerados. De outro, uma imensa massa se virando nos 30 em postos precários e de pouco prestígio.
Evidentemente, isso não quer dizer que De Masi não tenha trazido contribuições valiosíssimas à sociologia do trabalho. Provocar seus colegas a expandir horizontes, extrapolando o estudo da típica e declinante "classe operária", é certamente uma delas.
O italiano também era um entusiasta da renda básica universal e, claro, do tempo livre para o gozo da vida. Num mundo em que o culto ao trabalho duro é um valor quase inabalável, está aí uma postura digna de nota.
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