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Opinião

Trump mostra que neoliberalismo é o grande derrotado de seu governo

Ainda que Donald Trump tenha mirado a cultura "woke" — geralmente associada à esquerda — em seu discurso no Congresso dos Estados Unidos, suas ameaças a parceiros comerciais no mundo inteiro mostram que a grande derrotada no regresso do republicano à Casa Branca é a direita moderada liberal.

A retórica belicosa de Trump não deixa dúvidas de que o mundo passa por sua maior transformação geopolítica desde os anos 1980, quando teve início o que se convencionou chamar de "neoliberalismo".

A guerra comercial iniciada pelo presidente norte-americano mostra que tanto o espírito do livre mercado quanto a arquitetura de instituições multilaterais fortes — como a Organização Mundial do Comércio e o Fundo Monetário Internacional — atravessam sua mais profunda crise em quase meio século.

Durante muito tempo, a cartilha neoliberal se confundiu com o próprio conceito de "globalização". Para reduzir custos trabalhistas, indústrias migraram de países centrais para nações da periferia do sistema, sobretudo no sudeste asiático. A regulamentação financeira e as barreiras comerciais entre os países foram afrouxadas.

O receituário até foi capaz de romper a estagnação e dinamizar a economia mundial na ressaca da crise do petróleo da década de 1970. Porém, promoveu uma intensa concentração de renda e deixou para trás legiões de trabalhadores condenados a empregos instáveis e cada vez mais mal remunerados.

Os tecnocratas neoliberais nunca deram muita bola para os efeitos colaterais de suas políticas. Mas até mesmo nos Estados Unidos elas geraram uma massa de "ressentidos" que acabou elegendo Trump na esperança de retomada de um passado idílico, em que a América ocupava o primeiro lugar.

Agora, o longo discurso do republicano no Capitólio mostra que ele está mesmo disposto a erodir os pilares do neoliberalismo e a recauchutar a "política do grande porrete" — a estratégia do presidente Theodore Roosevelt de defender na marra os interesses de seu país, no começo do século 20.

O exemplo mais cabal desse plano talvez seja a chantagem com a Ucrânia, pressionada a liberar o acesso a minerais estratégicos em nome de uma precária segurança militar no conflito com a Rússia. Mas ele também se reflete no "nós não precisamos deles", em referência ao possível aumento de tarifas de produtos importados do Brasil para defender produtores norte-americanos.

A agenda patriótica e antiglobalista de Trump tem acendido uma série de alertas sobre os efeitos de uma guerra comercial generalizada, sobretudo o da escalada da inflação — receio por excelência dos líderes que construíram a ordem neoliberal.

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Mas não é só no programa econômico protecionista que Trump demonstra a derrocada do ideário da direita moderada liberal. A crise também se manifesta na cruzada do presidente norte-americano contra a cultura woke, acusada por sua base de dividir a população e privilegiar minorias progressistas em detrimento de uma suposta maioria conservadora.

Prova disso é que as políticas ESG, criadas por grandes corporações para preservar o meio ambiente e defender os direitos humanos, estão na berlinda. Para uma parcela conservadora cada vez mais expressiva dentro e fora dos Estados Unidos, o ESG não passa de uma perversão woke.

Não à toa, Trump já pisou no acelerador da exploração de petróleo e instigou Big Techs a um libera geral nas redes sociais, abrindo portas para ofensas contra populações estigmatizadas, em nome de uma suposta "liberdade de expressão".

Só o tempo dirá se as promessas do presidente norte-americano vão se traduzir em medidas concretas ou se ficarão no campo das bravatas. Mas uma coisa é certa: o mundo tal qual o conhecíamos — ancorado nos princípios do multilateralismo, do livre mercado e do ESG — definitivamente não é mais o mesmo.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.