Breque Nacional não 'obriga' apps a negociar com entregadores; entenda
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Apesar de ter contado com ampla adesão de entregadores e de haver derrubado até 100% de pedidos em restaurantes país afora, o Breque Nacional da semana passada terminou sem que os aplicativos abrissem negociações oficiais sobre o aumento da remuneração das corridas — pauta central da greve realizada entre 31 de março e 01 de abril.
Por lei, empresas são obrigadas a dialogar com sindicatos e a debater convenções coletivas no caso de trabalhadores reconhecidos como empregados, nos moldes da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Entretanto, a falta de regulamentação para a atividade dos entregadores de apps isenta as plataformas não só da responsabilidade de receber entidades representativas, mas também de construir acordos com a categoria, avaliam fontes ouvidas pela coluna.
"A gente sabe que as empresas podem se recusar a sentar numa mesa e a negociar com entregadores não institucionalizados, não sindicalizados", afirma Nicolas Souza Santos, membro da Anea (Aliança Nacional dos Entregadores por Aplicativos) e um dos organizadores do Breque Nacional. "Por isso é que a gente pretende que os órgãos públicos, sejam eles quais forem, entrem nessa discussão, dada a indignação claramente demonstrada pelas ruas", complementa.
Na opinião de Jorge Souto Maior, juiz do Trabalho e professor da USP (Universidade de São Paulo), a resistência dos aplicativos em atender as reivindicações dos entregadores, mesmo após a massiva mobilização da categoria, mostra a necessidade de usar os mecanismos previstos na legislação trabalhista para forçar as empresas a negociar.
"Mesmo que alguns entregadores considerem que não querem ser trabalhadores CLT, que não querem ser sindicalizados, fica aí o aprendizado do quanto a regulamentação dessas relações de trabalho como relações de emprego é importante", explica Souto Maior.
A análise é compartilhada por Cássio Casagrande, procurador do MPT (Ministério Público do Trabalho) e professor da UFF (Universidade Federal Fluminense). "O movimento dos entregadores mostra uma obviedade que muitos fingem ignorar: eles são trabalhadores e não 'patrões de si mesmos'. Portanto, como prevê a Constituição, deveriam ter o direito reconhecido não apenas à greve, mas também à negociação coletiva e à celebração de acordos coletivos de trabalho", diz o procurador.
Apps dizem estar abertos a reivindicações de entregadores
Nos posicionamentos distribuídos à imprensa, tanto a Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia) — representante de iFood, Uber e 99 — quanto as próprias plataformas afirmam respeitar o direito à manifestação. Em geral, também dizem estar abertas às reivindicações dos entregadores e à regulamentação do trabalho por aplicativos.
Em suas redes sociais, o iFood chegou a publicar um posicionamento qualificando como "fake news" a informação de que a plataforma teria se recusado a escutar representantes dos entregadores.
"O iFood se reuniu com nove representantes da categoria na tarde do dia 31/3, no escritório da empresa em Osasco-SP. Durante a reunião, foram discutidas as principais demandas apresentadas pelo movimento e ficou acordado que o iFood retornará com devolutivas", destaca o comunicado.
A plataforma, porém, não é obrigada a manter uma mesa de negociação periódica com os entregadores e nem a debater um acordo coletivo, como propõe a CLT. Também não há um prazo determinado para que o iFood ofereça uma proposta de reajuste aos entregadores.
A postura da empresa, líder absoluta do mercado de delivery e alvo principal do Breque, é questionada por Gilberto Almeida dos Santos. Apesar de ser o presidente do SindimotoSP, o sindicato dos 'motoboys' da capital paulista, o dirigente não participou da reunião na sede da companhia no dia 31.
"A partir do momento que ela sabe que o regramento no Brasil se dá através dos instrumentos de convenção coletiva e de acordo coletivo, com a mediação do próprio Ministério do Trabalho, ela comete toda uma quebra do regramento jurídico do mundo do trabalho e faz uma prática antissindical", critica Santos.
Na avaliação de Souto Maior, o Breque Nacional funciona como uma espécie de "coerção moral", expondo a precariedade do trabalho em aplicativos. No entanto, avalia o professor, é necessário criar mecanismos "para pressionar institucionalmente o empregador, de modo a que ele se sinta, de fato, juridicamente obrigado a se sentar à mesa [de negociação]".
Proposta do governo para regulamentação do trabalho por apps não avançou
A organização do Breque Nacional ocorreu na esteira do fracasso da regulamentação proposta pelo governo federal para entregadores e motoristas de aplicativo.
Em maio de 2023, o MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) criou uma comissão especial com representantes de trabalhadores e porta-vozes de plataformas para costurar um acordo e apresentar um projeto de lei (PL) ao Congresso Nacional.
Porém, seis meses após o início das negociações, não houve consenso e os debates foram encerrados. No caso dos motoristas, o governo chegou a apresentar um PL, em tramitação na Câmara dos Deputados.
A última oferta apresentada pela Amobitec previa um mínimo de R$ 12 por hora efetivamente trabalhada aos entregadores. A proposta foi recusada pelas lideranças da categoria.
Um dos principais pontos de discordância dizia respeito justamente ao conceito de "hora efetivamente trabalhada", do qual as plataformas não abriam mão. Para ganhar R$ 12, um entregador precisaria somar 60 minutos em viagens — os intervalos entre as corridas não seriam remunerados.
Por outro lado, os representantes dos entregadores cobravam o pagamento por "hora logada". Ou seja, todo o tempo à disposição do aplicativo, incluindo os períodos de espera entre uma viagem e outra, deveria ser remunerado.
"As empresas ignoraram a mobilização [o Breque] dos trabalhadores", afirma Adriana Marcolino, diretora técnica do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), que também participou da comissão especial montada pelo governo federal em Brasília.
"A gente precisa de um marco legal para garantir um patamar mínimo de direitos, e também o direito à organização coletiva sindical para que as entidades sindicais e as organizações que representam esses trabalhadores possam também avançar, via negociação coletiva", finaliza a representante do Dieese.
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