iFood cria franquia de entrega 'isenta' de responsabilidade trabalhista
Ler resumo da notícia
Líder absoluto do delivery de comida no país, o iFood aposta em um novo sistema de entrega — substituindo empresas terceirizadas por "franquias de serviços logísticos" — para driblar condenações na Justiça decorrentes de irregularidades trabalhistas cometidas por suas subcontratadas. A avaliação é de especialistas e lideranças de entregadores ouvidos pela coluna.
O modelo já implementado em 14 cidades se expande no momento em que o Supremo Tribunal Federal (STF) pode liberar de vez a contratação de profissionais por meio de terceirizadas, PJs (pessoas jurídicas) e franquias, mesmo em casos já apontados como fraudes à legislação trabalhista por diversas instâncias da Justiça do Trabalho.
No último dia 14, o ministro Gilmar Mendes suspendeu a tramitação de todos os processos em curso no Brasil sobre esses temas até que o STF chegue a um entendimento de "repercussão geral" a ser aplicado para todos os processos.
A ação específica sob relatoria de Mendes, que pode servir de referência para matérias semelhantes, diz respeito justamente a um contrato de franquia que teria sido usado para mascarar um vínculo empregatício nos moldes da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho).
Ao contrário de terceirizadas, franquias não geram 'responsabilidade subsidiária'
Até a criação no ano passado da EntreGô, a franqueadora de serviços logísticos do grupo iFood, a plataforma operava de duas formas distintas. No modelo chamado de "nuvem", ainda em funcionamento, o entregador faz o cadastro no aplicativo e aceita as corridas ofertadas na tela do celular, definindo por conta própria os horários e a região em que atua.
Já no sistema OL (Operador Logístico), concebido para assegurar o atendimento a praças recém-abertas ou com alta demanda de pedidos, os entregadores ficam submetidos a uma terceirizada. A intermediária recruta os trabalhadores e controla os pagamentos, além de organizar os turnos e delimitar os bairros a serem cobertos. Em geral, os profissionais não têm carteira assinada.
Segundo o artigo 5A da lei federal 6.019, quando uma terceirizada não paga corretamente os direitos trabalhistas de um empregado, a tomadora final do serviço é obrigada a assumir a dívida — a chamada "responsabilidade subsidiária" (complementar).
Por essa razão, o iFood já foi condenado de forma subsidiária em processos movidos por entregadores contra OLs. A coluna também relatou dois episódios, um em Santa Catarina e outro em São Paulo, de profissionais que levaram calotes das terceirizadas do aplicativo. Em ambos os casos, o iFood interveio e quitou os pagamentos.
Desde a criação da EntreGô, no entanto, empresas OL de praças importantes vêm se transformando em franquias. Para trabalhar, o entregador é obrigado a abrir uma MEI (Microempreendedor Individual) e a emitir nota fiscal de prestação de serviço.
Gerson Silva Cunha, vice-presidente do Sindimoto-SP, sindicato dos motoboys de São Paulo (SP), diz que os entregadores a serviço da EntreGô contam com um piso fixo de remuneração e um complemento por produtividade. Além disso, os trabalhadores são obrigados a pegar escalas de trabalho com antecedência e a cumprir os horários fixados pela franquia, assim como acontece no sistema OL. "O iFood estudou uma forma de continuar com os entregadores logados no aplicativo, como nos OLs, mas sem ser responsabilizado", afirma.
Vanessa Patriota, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT), faz avaliação semelhante. "A opção da iFood pelos contratos de franquia mantidos com a EntreGô, a meu ver, tem a clara intenção de evitar a sua responsabilização subsidiária pelos direitos trabalhistas sonegados, pois, a princípio, a relação entre franqueador e franqueado não gera responsabilidade subsidiária", explica.
Segundo Murilo Oliveira, juiz trabalhista e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST) tendem a não reconhecer a responsabilidade subsidiária dos franqueadores nos casos de descumprimento de obrigações trabalhistas por parte dos franqueados.
Mas Oliveira ressalva que as orientações do TST se aplicam às franquias "de verdade". Por exemplo: a matriz de uma rede de fast food não pode ser responsabilizada pelas irregularidades cometidas pelo dono de um restaurante específico.
De acordo com o professor da UFBA, para burlar a legislação, empregadores passaram a aproveitar a interpretação sobre o tema feita pela última instância da Justiça do Trabalho. "As empresas perceberam isso e passaram a colocar o rótulo de franquia em contratos que, na prática, são de emprego [nos moldes da CLT]", complementa.
Segundo Vanessa Patriota, do MPT, "caso comprovado o uso fraudulento do contrato de franquia, é tanto possível o reconhecimento da responsabilidade subsidiária quanto o reconhecimento dos vínculos de emprego diretamente com a iFood/EntreGô".
O tema segue em debate no STF. Não há previsão para uma decisão da corte sobre a repercussão geral nos casos de pejotização, uberização e franquias. Murilo de Oliveira, no entanto, vê com receio a possibilidade de o Supremo, sob o argumento de que qualquer tipo de terceirização é lícita, autorizar contratos anteriormente tidos pela Justiça do Trabalho como fraudes à CLT, após a análise de provas concretas.
"Isso é tornar o direito de trabalho facultativo. Porque, se não importa mais a realidade, a empresa, por tendência de mercado, vai escolher o contrato que lhe traga menos ônus financeiros", analisa.
O que diz o iFood
A coluna questionou o iFood sobre o número de entregadores a serviço da EntreGô. Em nota, a assessoria de imprensa da empresa informou que o aplicativo conta com 360 mil entregadores ativos na plataforma, mas que "a empresa não abre a divisão por categorias".
O posicionamento informa que a EntreGô foi criada para "oferecer entregas seguras, com uma gestão padronizada e maior qualidade", e que "o modelo não busca substituir nenhum outro formato de serviço de logística que opere com o iFood".
Questionado especificamente se o iFood estaria implementando o sistema de franquias para se eximir da responsabilidade subsidiária trabalhista, a assessoria de imprensa afirmou que "a relação jurídica da plataforma com os franqueados da EntreGô e seus entregadores é a mesma que existe com os operadores logísticos e seus entregadores". A nota diz ainda que os franqueados são obrigados a prestar contas sobre pagamentos a entregadores, além de manter índices de qualidade de entrega.
"Além disso, as regras trabalhistas, tributárias e cíveis aplicáveis ao modelo devem ser seguidas pelos franqueados", finaliza o texto.
Nota da redação: o texto foi atualizado às 10h35 do dia 29 de abril para acrescentar posicionamento do iFood sobre a relação jurídica da plataforma com os franqueados da EntreGô, enviado após a publicação da reportagem
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.