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Opinião

Impacto da 'pejotização' sobre o INSS supera (e muito) o das fraudes

Os R$ 6,3 bilhões possivelmente desviados entre 2019 e 2024 em descontos fraudulentos no INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) — escândalo que já custou a cabeça de Carlos Lupi, ex-ministro da Previdência — vão soar como troco de padaria se o STF (Supremo Tribunal Federal) abrir de vez a porteira da "pejotização", como vem se desenhando.

Não se trata, claro, de passar pano para irregularidades cometidas contra o (pouco) dinheiro dos aposentados brasileiros, mas de chamar a devida atenção para os impactos da contratação desenfreada de profissionais que poderiam ter a carteira assinada, mas que atuam como pessoas jurídicas.

Para se ter uma ideia, um estudo da FGV (Fundação Getúlio Vargas) publicado no ano passado calculou uma perda de arrecadação para os cofres públicos de até R$ 144 bilhões, entre 2012 e 2023, decorrente dessa prática comumente utilizada para driblar o pagamento de impostos e os encargos trabalhistas.

Em abril, o ministro Gilmar Mendes suspendeu todos os processos em tramitação no judiciário brasileiro sobre a pejotização. Segundo o próprio decano do Supremo, a corte deve estabelecer no segundo semestre deste ano a chamada "repercussão geral" — um entendimento válido para todos os casos semelhantes.

A polêmica não é de hoje. Há pelo menos dois anos, a maioria dos ministros do STF vem derrubando decisões da Justiça do Trabalho que apontam fraudes, reconhecem o vínculo empregatício e determinam o pagamento de direitos, nos moldes da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), em ações movidas por profissionais contratados como PJs (pessoas jurídicas). Gilmar Mendes é o principal líder dessa tendência. Dos 11 ministros do STF, apenas Edson Fachin e Flávio Dino são apontados como exceções.

No 1º de maio, um manifesto lançado por entidades representativas de juízes, procuradores e advogados trabalhistas defendeu a competência da Justiça do Trabalho para julgar processos sobre a pejotização. O documento faz diversos alertas: um eventual "libera geral", como o STF tem chancelado, pode não só tornar a CLT letra morta, como também causar impactos profundos para o caixa do Estado.

Prejuízo seria de R$ 384 bi em um ano se metade dos celetistas virassem PJs, segundo FGV

O estudo da FGV dá a devida dimensão do potencial do rombo. Se metade dos 35,5 milhões de trabalhadores com carteira assinada no país em 2023 deixassem de ser registrados como empregados CLT e passassem a ser contratados como PJ, a conta chegaria a impressionantes R$ 384 bilhões em um único ano. A matemática inclui a tributação mais baixa sobre o imposto de renda, além das contribuições não recolhidas ao INSS.

O exercício pode parecer exagerado, mas não é tão irreal assim. Afinal, por que um empregador contrataria um profissional de acordo com as regras da CLT, pagando direitos como 13º salário e férias remuneradas, se a instância máxima da Justiça brasileira decidir de uma vez por todas que todo e qualquer contrato pode ser considerado uma forma de terceirização, incluindo os que não passam de burla à legislação trabalhista?

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Como bem mostra o estudo da FGV, a pejotização é mais comum entre profissionais qualificados e de remuneração acima da média — o que contribui, evidentemente, para o agravamento da injustiça tributária no país.

Mas essa forma de terceirização ampla e irrestrita já está se espalhando para a base da pirâmide. Quer um exemplo? Entregadores do iFood que trabalham para "franquias de serviço logístico", a serviço do aplicativo, precisam abrir um MEI (Microempreendedor Individual) e emitir Nota Fiscal para seus contratantes. E isso acontece apesar de juristas e autoridades enxergarem nessa relação de trabalho os elementos típicos do vínculo CLT, como ordens a seguir e horários a cumprir.

Regime do MEI pode gerar rombo de R$ 600 bi até 2060, diz Ipea

O caso dos MEIs, por sinal, é bastante emblemático do esvaziamento da proteção trabalhista e da corrosão do orçamento da Previdência.

Apesar de ter sido criado em 2008 para estender o cobertor do Estado a trabalhadores autônomos informais e de baixa renda, o MEI teve desvirtuado seu papel inicial, segundo outro estudo da FGV, publicado em 2023, beneficiando os profissionais do topo.

Em média, os microempreendedores individuais tinham renda mensal duas vezes maior que a dos informais e 40% superior à dos trabalhadores com carteira assinada, de acordo com os dados compilados pela pesquisa.

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Outro sintoma de que o regime não contempla os mais vulneráveis é a diferença de escolaridade. Em 2023, a parcela de MEIs com diploma de faculdade, por exemplo, era consideravelmente maior que a dos trabalhadores com carteira assinada: 31,3% contra 22,4%.

Os impactos sobre a Previdência também saltam aos olhos. Enquanto um empregado com carteira assinada tem desconto de até 14% em seus vencimentos para o INSS, o MEI paga apenas 5% do salário mínimo. Mesmo que o sistema seja altamente vantajoso, a inadimplência é bastante alta. Só quatro a cada dez microempreendedores estão em dia com a mensalidade, atualmente fixada em R$ 75,90.

O resultado é uma verdadeira bomba-relógio. Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada) já estimou em até R$ 600 bilhões o déficit para o INSS gerado pelo regime do MEI até o ano de 2060, se nenhuma alteração for feita até lá.

O STF não parece ainda ter a clara dimensão do que a pejotização irrestrita representa para o mundo do trabalho e para a já tão sobrecarregada Previdência. Quiçá o atual escândalo do INSS sensibilize os ministros para a grandiosidade dos problemas futuros.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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