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Reforma do funcionalismo proposta pelo governo é apenas pontapé inicial

10/09/2020 04h00

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Depois de muito relutar, o presidente Jair Bolsonaro finalmente enviou, na última quinta-feira, uma proposta de reforma administrativa ao Congresso Nacional. Este nunca foi um tema fácil e muito menos popular, principalmente por afetar interesses corporativos de grupos de funcionários públicos. Não obstante, revisar a governança do Estado é algo que acabará beneficiando toda a sociedade, inclusive aqueles bons servidores, que hoje se sentem muitas vezes desestimulados e desprestigiados com a falta de um modelo de incentivo adequado.

De maneira mais específica, há, ao menos, três razões para levarmos adiante uma reforma administrativa. A primeira delas está associada à necessidade de empreendermos um ajuste nas contas públicas, que é mais premente no caso dos estados. Hoje, segundo metodologia do Tesouro Nacional, ao menos 9 estados já gastam mais do que 60% da receita corrente líquida com funcionários ativos e inativos (limite do teto definido na Lei de Responsabilidade Fiscal) e outros 12 já estão acima dos 54% (limite de alerta). Se nada for feito com urgência, esses estados, além de perderem totalmente sua capacidade de investimento, caminharão a passos largos para a insolvência.

Entretanto, a reforma enviada pouco ajuda no curto prazo. Ao contrário, ao preservar o status quo e não mexer com o funcionalismo atual, o texto proposto apenas surtirá efeitos no médio e longo prazo, com a entrada de novos ingressantes no serviço público. De toda forma, há um pequeno alento para o futuro, na medida em que o projeto formaliza a existência de carreiras de Estado e permite, em paralelo, que sejam realizadas contratações com vínculos por prazos determinado e indeterminado. Assim, ao mesmo tempo em que o projeto preserva as principais garantias a determinadas carreiras fundamentais para o bom funcionamento do Estado, ele também dá maior maleabilidade no processo de contratação e demissão de outros profissionais, cuja demanda pode ser temporária, além de facilitar a realização de cortes para contemplar um eventual ajuste das contas públicas.

A segunda razão para uma reforma administrativa é criar incentivos adequados que tornem o serviço público mais eficiente. Neste caso, novamente, estamos olhando na melhor das hipóteses para o futuro. Todos os aspectos positivos só deverão valer para os novos funcionários. Criar mecanismos mais críveis de demissões por insuficiência de desempenho, ampliar o tempo para obtenção de estabilidade no serviço público e o fim de adicionais por tempo de serviço, por exemplo, só valerão para as novas contratações. Também ficou de lado a possibilidade de unificação de várias carreiras no âmbito federal, cuja medida permitiria dar maior autonomia e movimentação de funcionários entre aéreas do governo.

Mesmo a parte do projeto que procura permitir ajustes mais eficientes da estrutura burocrática traz consigo um grande "jabuti". Ao alterar o artigo 84 da Constituição Federal, o presidente da República poderá, com uma canetada, acabar com toda a institucionalidade regulatória do país (autarquias reguladoras), o que criará um ambiente de total insegurança para investidores que queiram alocar seus recursos nesses setores por aqui. Não discuto a necessidade de se dar mais liberdade para que o "governo da vez" faça adaptações mais rápidas na estrutura burocrática para obter seus objetivos. Entretanto, seria fundamental preservar o que se denomina estrutura de Estado, responsável por dar estabilidade às regras do jogo, construídas com muito esforço no debate da sociedade refletido no Congresso.

Finalmente, a terceira razão para a reforma aqui tratada tem a ver com a justiça e isonomia. Justiça porque há, no âmbito estadual, e até mesmo no municipal, muitos penduricalhos que são verdadeiros "privilégios adquiridos". Férias de mais de 30 dias, remunerações indenizatórias que mal se sabe a origem e muitas vezes pagas retroativamente, incorporação parcial ou total de remuneração de cargos em comissão, são apenas alguns dos exemplos que vemos por aí, principalmente nos judiciários e legislativos de todo país. Isonomia porque, dadas as disfuncionalidades criadas ao longo do tempo, podemos encontrar pessoas no setor público exercendo funções semelhantes, mas com remunerações bastante distintas.

Infelizmente, neste aspecto, a proposta de Jair Bolsonaro privilegiou mais uma vez os militares, a exemplo da Reforma da Previdência, e deixou de fora o topo do Legislativo e Judiciário, além do Ministério Público. Foi argumentado que o presidente não teria competência para mandar alterações que impactassem os benefícios da cúpula do Judiciário e do Legislativo, mas isto está longe de ser um consenso no meio jurídico (mesmo porque se trata de uma Proposta de Emenda Constitucional, que não envolve cláusula pétrea). O grande problema é que, ao privilegiar os militares e se eximir da responsabilidade de propor correções para certos grupos da base dos poderes, o presidente dá uma forte munição para outras categorias do funcionalismo público, que também pretendem preservar sua situação atual.

Em resumo, sob o ponto de vista técnico, a reforma enviada ao Congresso pode ser considerada por muitos como tímida, de pouco impacto no curto prazo e corporativista. De toda forma, o pontapé inicial foi finalmente dado e a bola está agora com o Congresso, onde haverá muito espaço para aperfeiçoamentos. Além do mais, assuntos como esses não se esgotam em uma única reforma. A melhoria da atuação do Estado é um processo que deve ser constantemente discutido e a institucionalidade, revista sempre que necessário.