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Há como prever se a fusão entre Localiza e Unidas será aprovada pelo Cade?

25/09/2020 04h00

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Toda vez que é divulgada alguma fusão ou aquisição entre grandes empresas em algum mercado, sou sempre consultado por jornalistas, consultores da área financeira e amigos se, afinal de contas, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) deve aprovar ou não a operação em questão. Nesta semana não foi diferente com o anúncio da fusão entre as empresas Localiza e Unidas (Veja mais em: Localiza e Unidas anunciam fusão e criam gigante da locação de veículos).

Para a decepção dos meus interlocutores, minha resposta é sempre a mesma: sem analisar detidamente o caso, com informações claras sobre o mercado e as empresas que dele participam, não há como fazer qualquer avaliação. Isto porque, ao contrário do que a maioria das pessoas acredita, a concentração de mercado, por si só, diz muito pouco sobre os efeitos da operação para a concorrência. Mais do que isso, a constituição de uma empresa com participação elevada é condição necessária, mas nunca suficiente para que o órgão antitruste bloqueie uma transferência ou junção de ativos empresariais.

Em realidade, toda a análise do Cade se inicia por identificar cada um dos segmentos de atuação das empresas requerentes (aquelas envolvidas na operação), procurando entender se existe uma eventual sobreposição no mercado de atuação (concentração horizontal), complementariedade entre eles (conglomeração) ou, até mesmo, se atuam em níveis distintos da cadeia produtiva, mas complementares (verticalização). Aparentemente, o caso da Localiza/Unidas se enquadra em uma concentração horizontal.

De toda forma, é só a partir deste momento (com a definição do que se denomina mercados relevantes afetados) que o órgão investigará se a concentração se elevará substancialmente em um ou mais mercados definidos com a operação em questão. Caso isso não se confirme, por economicidade processual, a operação acaba sendo aprovada sem uma análise mais detida. A questão que resta é saber o que o Cade faz quando há indícios de que a concentração se elevará substancialmente.

Para esses casos, há um guia de análise utilizado pelo órgão, que apregoa que outras variáveis devem ser avaliadas para verificar se a nova empresa criada pode não ter incentivo para elevar preços ou adotar condutas que afetem a concorrência. Por exemplo, no caso da indústria, se uma análise complementar indicar que eventuais elevações de preços apenas estimularão a importação do produto, trazendo os preços novamente para os níveis pré-operação, não haveria razão para se preocupar com o efeito de uma eventual fusão. Em outras palavras, a importação seria um "antídoto efetivo" para qualquer tentativa de gerar dano aos consumidores.

De maneira similar, em mercados em que a entrada de novas empresas for fácil, elevar preços também acabará por estimular a entrada de novos concorrentes, tornando pouco efetiva qualquer estratégia de elevar o lucro desta maneira. Novamente, o que se busca é verificar se a nova empresa constituída, por maior que ela seja no mercado, teria incentivos para adotar práticas anticompetitivas.

O Cade também avalia qual o padrão de concorrência que remanescerá no mercado após a operação. E, para isso, ele pode seguir duas linhas de investigação. A primeira é verificar se a compra de uma empresa implicará algum incentivo adicional para que as empresas restantes no mercado passem a atuar de forma coordenada, como, por exemplo, formando cartéis. Esta linha de análise está muito mais associada a situações nas quais tanto os produtos como o perfil das empresas no mercado tendem a ser mais semelhantes entre si. A segunda linha, por sua vez, envolve identificar empresas que, com a operação, se tornem grandes o suficiente para sozinhas provocarem algum dano a consumidores. Nessas situações, o que se procura verificar é se as demais firmas competidoras teriam condições e incentivo para fazer frente a estratégias da "firma dominante" que possam implicar, por exemplo, alguma restrição de oferta de produtos ou elevação de preços no mercado.

Para complicar um pouco mais, há ainda casos que envolvem operações cujas empresas não concorrem diretamente em um dado mercado, mas são complementares em algum elo da cadeia produtiva (como uma fabricante de dado produto e uma distribuidora) ou mesmo atuam em mercados muito próximos, cujo consumidor entenda que os produtos são complementares (por exemplo, bancos comerciais e corretoras). Casos como esses exigem exercícios adicionais de verificação dos incentivos criados, que passam pela possibilidade de discriminar concorrentes ou criar cestas de produtos que se assemelhem a casos de venda casada.

Mais recentemente, o Cade tem se deparado também com situações que envolvem o que se conhece como nova economia. São exemplos plataformas do tipo Google, Facebook e as denominadas fintechs (empresas que oferecem soluções financeiras digitais). Casos como esses têm exigido um nível de conhecimento técnico-econômico mais elevado, e desafiado os órgãos de defesa da concorrência pelo mundo todo.

Finalmente, há que se pontuar que as empresas envolvidas na fusão sempre podem apresentar duas alegações adicionais para terem a operação aprovada. A primeira é que ela seria necessária para gerar eficiências a serem compartilhadas com consumidores, e que não seriam obtidas de outra forma. A segunda é o que se conhece como tese "da firma falida", cujo argumento envolve a possibilidade de uma das empresas poder quebrar caso a operação não seja aprovada. Mas vale lembrar que qualquer dessas possíveis alegações deve ser claramente comprovada por meio de estudos econômicos e outros documentos requisitados pelo Cade.

Como se observa, a constituição de uma empresa com elevada participação de mercado é apenas uma etapa da discussão na esfera da defesa da concorrência. Por isso, a não ser que se esteja analisando um caso nitidamente de baixa participação (menos de 20%, por exemplo), e que não envolva nem verticalização ou conglomeração, qualquer previsão sobre o resultado da análise realizada no Cade será sempre puro exercício de futurologia (a não ser, obviamente, que se entre a fundo no detalhe da operação e do mercado em questão).