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O governo deveria fazer indicações técnicas para as agências, como a Anvisa

20/11/2020 04h00

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Na última semana, o Brasil assistiu atônito à discussão que tomou conta do processo de pesquisa da vacina CoronaVac. Por mais que a Anvisa tenha se esforçado na explicação técnica sobre os procedimentos internos, não me parece razoável que em um momento de grave pandemia como a que vivemos, a burocracia se sobreponha aos interesses da sociedade mundial. Sem qualquer comprometimento da independência da agência, seria normal que os técnicos do órgão tivessem entrado em contato para esclarecer eventuais dúvidas quando o assunto é emergencial.

De toda forma, o mais grave dessa história foi o comportamento do nosso presidente na última semana. Além de comemorar o pseudo fracasso da vacina, com todo o risco de gerar ainda mais desconfiança sobre ela apenas por conta de seu desafeto político de São Paulo, ainda encaminhou para o Congresso um nome de mais um militar para a Anvisa, que, pelo que tudo indica, não atende aos critérios legais para ocupar o cargo. Notem que a questão aqui não é pessoal, mesmo porque nem conheço o indicado.

Para entender melhor o problema, devemos lembrar da Lei das Agências Reguladoras (LEI Nº 13.848/2019) aprovada já durante o governo Bolsonaro. Naquela oportunidade o presidente fez um verdadeiro escarcéu afirmando que estavam querendo tirar-lhe o direito de indicar os diretores das agências. Cheguei a escrever sobre o assunto. (Veja mais em: Bolsonaro Apenas Repete o Discurso de Lula Sobre as Agências Reguladoras). Fato é que com a grita do Presidente - que hoje fica mais clara a razão - a lei foi aprovada com a retirada do artigo que propunha que uma comissão técnica encaminharia uma lista tríplice para a escolha pelo presidente do nome a ser encaminhado para sabatina no Senado.

De toda forma, permaneceu na lei dispositivo sobre a exigência de critérios técnicos para a nomeação de diretores das agências. Mais precisamente o indicado deve ter experiência profissional de no mínimo: (a) 10 (dez) anos, no setor público ou privado, no campo de atividade da agência reguladora ou em área a ela conexa, em função de direção superior; ou (b) 4 (quatro) anos ocupando cargo de direção ou de chefia superior em empresa no campo de atividade da agência reguladora; ou (c) 10 (dez) anos de experiência como profissional liberal no campo de atividade da agência reguladora ou em área conexa. Além do mais, o indicado deve ter formação acadêmica compatível com o cargo para o qual foi indicado.

Uma leitura simples no currículo do candidato (ver: Jorge Luiz Kormann), ressalte-se mais um militar, não autoriza afirmar que ele tenha as condições exigidas pela lei. Também não ajudam as notícias sobre seu comportamento nas redes sociais, que teria divulgado mensagens contrárias à OMS (Organização Mundial da Saúde), realizado críticas à CoronaVac e curtido comentários de cunho político contrário ao desafeto do presidente, em um período em que ocupa cargo no Ministério da Saúde. Isto porque a função de diretor de agência reguladora exige total imparcialidade, inclusive política.

É claro que alguém poderia lembrar que indicações não técnicas e de cunho político ou corporativo foram várias vezes realizadas no passado, principalmente durante o governo do PT. Mas um erro nunca deve justificar outro. Além do mais, a nova lei das agências foi aprovada nos termos vigentes exatamente para corrigir este problema. Ou seja, diferentemente do passado, hoje está expresso na lei que apenas pessoas que tenham condições técnicas ocupem os cargos de diretoria. E isso tem por pano de fundo a ideia de que as agências reguladoras devem ser entendidas como órgãos de Estado, e não de governo.

O princípio básico desta lógica está centrado na ideia de que as decisões devem ser sempre técnicas, livres da qualquer interferência do governo de plantão. Em última instância, o que deve guiar as agências reguladoras é a adoção das melhores práticas regulatórias, de forma a atrair investimentos no setor, elevar a eficiência e garantir a modicidade tarifária ao consumidor. Para isso é fundamental que se crie regras adequadas e estáveis ao longo do tempo, garantindo-se a segurança jurídica. E neste sentido, é fundamental que os diretores (quem decide) sejam devidamente capacitados para o cargo que ocupam e que tenham independência administrativa e política. Por isso a lei se tornou de maneira positiva tão exigente no processo de escolha.

O problema é que infelizmente este artigo da lei tem sido deixado de lado. É de conhecimento público que Bolsonaro tem escolhido vários militares, sendo que alguns, inclusive, se identificam politicamente como ele e até o segue em atos públicos políticos. Na última leva de candidatos sabatinados, 6 dos 20 indicados tinham um perfil militar (veja também: Governo Consegue Emplacar Seis Militares em Agências Reguladoras). A atual indicação da Anvisa é só mais um caso.

Mesmo tomando-se por base apenas aspectos técnicos, a formação militar e o processo decisório que aprendem no exercício têm uma lógica totalmente distinta daquela necessária nas agências reguladoras, cujo caráter é eminentemente civil. E isso se torna tão mais verdade na medida em que no mundo todo se discute hoje uma mudança de paradigma de uma regulação de comando e controle, de caráter mais coercitivo, para um modelo responsivo de geração de incentivos, que exige um ambiente mais cooperativo. Assim, atitudes que exacerbam o poder da agência podem ser ruins não só para as agências reguladoras, na medida em que sejam criadas fricções internas e externas desnecessárias, mas também para a própria imagem do exército, o que seria péssimo em ambos os casos.

De toda forma, acho que isso pouco mudará nos próximos dois anos. O que parece é que muitas indicações continuarão a não seguir os critérios da lei e serem aprovadas sem maiores problemas, dada a base que o governo fechou no Senado. Muito provavelmente o presidente conseguirá aprovar todos os nomes que pretendem indicar. Mas em troca também terá que aceitar indicações de outros nomes com currículo questionável vindo do Centrão. O que resta saber é se os demais partidos no Senado se manterão em silêncio, permitindo que a lei que aprovaram em 2019 seja simplesmente rasgada dessa maneira.