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Proposta de "regulação de preços" pelo Banco Central pode gerar distorções

27/11/2021 04h00

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O Banco Central (BC) encerrou nesta semana o prazo para contribuições à Consulta Pública 89/2021, cujos objetivos são estabelecer limite máximo (cap) de 0,5% para a tarifa de intercâmbio (TIC) e limitar prazo para disponibilização de recursos a estabelecimentos comerciais no caso de cartões pré-pagos.

De maneira geral, a ideia do BC seria reduzir a taxa de desconto paga pelos estabelecimentos comerciais, com a expectativa de repasse dessa suposta economia para o consumidor final. O problema é que essa não é uma questão trivial, principalmente em mercados com as características de cartões de crédito e débito, cujos efeitos de intervenções em preços são muitas vezes imprevisíveis.

Ambientes como esses se enquadram no que a literatura econômica denominou de mercados (ou plataformas) de dois lados, nos quais os participantes são empresas que facilitam a interação entre diferentes agentes econômicos e constroem seu processo de maximização de lucro, definindo preços conjuntamente para os dois lados.

No caso específico do mercado de cartões (seja, de crédito, débito ou pré-pago), as administradoras (a bandeira Visa, por exemplo) facilitam transações financeiras entre portadores de cartões (nós) e estabelecimentos comerciais, definindo taxas (fees) para bancos emissores e empresas credenciadoras e a tarifa de intercâmbio (TIC) cobradas pelos bancos emissores.

Já esses últimos definem anuidade e juros para os portadores, além de serem remunerados pela TIC paga pelos adquirentes, que, por sua vez, estipulam uma taxa de desconto (Merchant Discount Rate - MDR) por transação efetuada para os comerciantes.

E tudo isso ocorre considerando-se as chamadas externalidades indiretas (de rede) geradas entre os dois lados do mercado. Sendo mais claro, a operadora sabe que o aumento da quantidade de portadores de cartões tornará sua rede mais atrativa para os comerciantes. Da mesma forma, ela também sabe que a elevação do número de estabelecimentos comerciais credenciados estimulará os consumidores a adquirirem os seus cartões.

Assim, a escolha da bandeira de "calibrar" preços entre os dois lados do mercado (comerciantes e portadores) levará sempre em consideração os ganhos e as perdas de lucratividade obtidas com as várias escolhas possíveis, que, por sua vez, dependerá da capacidade de reação dos dois lados a variações de preços.

Existem distintos modelos de negócios em mercados como esses, mas a tendência é que as empresas concentrem a maior parte da obtenção de sua receita no lado dos comerciantes, por meio da taxa de desconto praticada.

Sendo isso verdade, implicitamente haveria o entendimento de que os estabelecimentos comerciais têm menos capacidade de reação (são mais dependentes da rede) do que os consumidores (portadores de cartões), que, inclusive, podem usar outros instrumentos de pagamentos, como dinheiro ou Pix.

Nesse sentido, é possível entender a reclamação dos comerciantes com relação às taxas de descontos atualmente praticadas. Só que, sob o ponto de vista do regulador, o que deve prevalecer é o interesse público, ou seja, o efeito agregado para a sociedade. E é aí que entra o dilema do Banco Central.

É preciso ter em mente que o nível de preços, ou seja, a soma de todos os preços praticados pela plataforma, ao invés de preços individuais ou da estrutura de preços de cada lado, é o meio mais apropriado para se avaliar algum abuso econômico por parte das plataformas.

Muitas vezes essas empresas cobram preços muito acima do custo de prestação de serviço de um lado, mas utilizam essa "receita extraordinária" obtida para subsidiar o outro lado, trazendo mais gente para dentro da rede e aumentando o número de transações efetuadas. Outras vezes, essas receitas são utilizadas para desenvolver novos serviços em benefício de todos.

Claro que, em determinados casos, a estrutura de preços que maximiza o lucro das plataformas em mercados de dois lados não é aquela socialmente desejável. No entanto, essa conclusão está muito longe de ser óbvia, principalmente em mercados mais inovativos, cuja interferência pode criar distorções, inibir investimentos e reduzir a concorrência e, por consequência, a riqueza gerada.

Nesse sentido, propostas de alterações regulatórias devem ser avaliadas com muito cuidado em mercados com essas características, principalmente quando interferem em preço. Os exercícios de intervenções regulatórias mecânicas que excluam a análise dos efeitos sobre alguns dos lados envolvidos geralmente levam a erros.

No caso brasileiro, a proposta que está sendo discutida envolve definir um teto para a tarifa de intercâmbio sobre cartões pré-pagos, que é somente parte da MDR, e que serve para remunerar os emissores de cartões. A expectativa com isso é a de que a taxa de desconto como um todo (a MDR) caia para os comerciantes e que eles repassem essa redução para o consumidor.

Vale lembrar que no Brasil este teto já foi colocado para o caso de cartões de débito, mas os resultados agregados, que é o que importa no final do dia, são ainda muito incipientes e pouco claros. Em particular, não há nada que indique que o consumidor terá algo a ganhar.

Por outro lado, se olharmos a experiência internacional, o que se percebe é que o teto de intercâmbio tem provocado uma transferência de recursos ao longo da cadeia de serviços dos emissores para os adquirentes. Em poucos casos houve relato de repasse dessa transferência para o comércio e apenas para os estabelecimentos maiores, com maior poder de barganha.

Aparentemente algumas Bandeiras na Europa também têm se apropriado de parte dessa redução da tarifa de intercâmbio por meio de aumentos ou da criação de novas taxas, principalmente de maneira não transparente.

Por sua vez, não há nada que indique que os consumidores têm se beneficiado com tal medida. Ao contrário, há relatos de aumento de tarifas para portadores, principalmente para detentores de cartões internacionais. Ademais, não foi observado qualquer aumento do número de transações com cartões, conforme esperado.

Fato é que a proposta do Banco Central deve ser analisada com cuidado e até com certa reticência, mesmo porque a tarifa de intercâmbio é consequência e não causa. Nesse sentido, caminhar com medidas que estimulem a concorrência atual e a entrada de novos players no mercado de emissão de cartões podem gerar resultados mais efetivos para comerciantes e consumidores.