Felipe Salto

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Opinião

O exótico pessimismo de Marcos Mendes

Dediquei minha coluna da semana passada para discutir as estimativas do déficit público de 2024 apresentadas pelo economista Marcos Mendes na Folha. Em sua réplica, ele fez diversas "concessões às críticas", aceitando-as parcialmente. Contudo, não resistiu à tentação de ressuscitar episódios antigos dissociados do assunto em tela.

Vamos discutir cada concessão à crítica, como ele denominou, para avançar no debate. Os temas não relacionados ao assunto do cálculo do déficit de 2024 serão abordados, também, logo em seguida. São dois casos: o da TLP (taxa de juros criada para substituir a antiga TJLP nos empréstimos subsidiados), verdadeira obsessão do autor; e o do Novo Arcabouço Fiscal.

Comentários iniciais sobre as divergências e a importância do resultado recorrente

As divergências a respeito das classificações de eventos não recorrentes, tanto nas receitas quanto nas despesas, são naturais. O debate relevante é exatamente este: avaliar e buscar certo consenso a respeito dessas exclusões e inclusões na conta de resultado primário.

A dificuldade técnica da estimativa de resultado recorrente é intrínseca à própria lógica do indicador. Há rios de tinta publicados sobre o assunto. O que criticamos, portanto, é a adoção de critérios "ad hoc" para calcular resultados que terminam sendo úteis a determinada argumentação.

De onde viriam diversas premissas para despesas que, na visão do autor, poderiam tornar-se recorrentes? Os ajustes propostos são quase sempre seletivos, ainda que baseados na desconfiança sobre a volta de práticas contábeis criativas adotadas por governos passados. Práticas que tenho criticado, desde 2009, em livros, artigos e análises.

Comentários, item a item, a partir da réplica de Mendes publicada pelo UOL

O que segue entre aspas foi extraído do artigo de Mendes no UOL. Para cada trecho, meus comentários. Entendo que essa tática facilitará o acompanhamento do debate pelos leitores e leitoras do UOL.

1 - Gastos com o Rio Grande do Sul (RS): "Façamos uma concessão à crítica e, em vez de incluir na conta do déficit toda a despesa líquida com o RS (R$ 27,6 bilhões), incluamos, de forma ad hoc, apenas R$ 10 bilhões, que representariam o valor de novas despesas excluídas da conta fiscal pela brecha aberta pela citada MP 1278/24. Isso diminuiria em R$ 17,6 bilhões o meu cálculo do déficit."
Mas, se concede à crítica, então por que manter volume "ad hoc" como sendo recorrente? O número não tem embasamento. Talvez pudesse coletar o histórico de créditos extraordinários ou pensar em outra maneira de fundamentar os seus R$ 10 bilhões. A justificativa de que a referida Medida Provisória teria aberto caminho para tornar esses gastos recorrentes é errada.

A ideia dessa ação é proporcionar um instrumento para evitar a improvisação no caso de novas tragédias e calamidades. Se algo de distorcido se observar no uso desses eventuais recursos, aí será outra história. História esta que merecerá a devida crítica, caso se materialize.

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Os créditos extraordinários estão previstos na Constituição justamente para combater os efeitos de situações similares ou equivalentes às de guerras e de calamidades. Depois do último processo de impeachment ocorrido no país, sua edição tornou-se mais criteriosa. A saber, a realização de créditos extraordinários no Orçamento geral, sem a devida justificativa, estava presente na fundamentação daquele processo, ao lado de outros fatores conhecidos.

2 - Transação tributária da Petrobras: "Façamos nova concessão à crítica, considerando, mais uma vez de forma ad hoc, que o governo venha a conseguir R$ 6 bilhões por ano com esse tipo de receita, de forma recorrente, o que diminuiria em R$ 6 bilhões o meu cálculo do déficit."

Mais uma vez, o autor concede à crítica. Ele propôs dividir, sem maiores explicações, o valor de R$ 12 bilhões, para considerar que metade seria recorrente. Qual o sentido? O próprio texto explica que é uma premissa adotada de maneira ad hoc. Não soa como uma prática razoável para se obter um cálculo tão importante, isto é, uma conta de "déficit real".

3 - Diversas concessões reunidas: "Fazendo esse tipo de concessão em outros pontos de críticas, consegui, com boa vontade, reduzir o impacto das despesas e receitas não recorrentes no déficit em R$ 30 bilhões. Por isso, no quadro acima, o subtotal 2 cairia de 1,7% para 1,5% do PIB."

Não se trata de boa vontade, vale dizer. Trata-se, sim, de explicar como havia obtido a premissa original para esse conjunto de eventos e, agora, por que razão decidiu retirar R$ 30 bilhões. Sim, três dezenas de bilhões de reais, não três reais. A soma e a subtração de itens na receita e na despesa para se obter um cálculo alternativo ao oficial não deveria ser fruto de excesso ou falta de "boa vontade". Melhor seria buscar justificativas técnicas ou, na ausência delas, conceder, de fato, à crítica.
Esses três pontos aqui destacados levaram Mendes a revisar sua projeção original de "déficit real", que ficaria menor em R$ 53,6 bilhões (17,6+6+30). O vaivém com esses valores bilionários é uma forma, no mínimo, exótica de tratar a contabilidade. Certo viés pessimista acaba se sobrepondo e turvando o objetivo que, a meu ver, seria o mais instigante para esse esforço intelectual: o cálculo de uma conta recorrente de resultado primário.

4 - Gastos parafiscais: "Salto rejeita a inclusão dos gastos parafiscais nos cálculos, apegando-se à classificação contábil da despesa como financeira ('o ideal seria excluir receitas e despesas financeiras, afinal, estamos tratando do resultado primário'), sem levar em conta o seu impacto real na economia. Confunde, portanto, classificação contábil com o impacto econômico real da despesa."

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Não há confusão, de minha parte, mas, sim, uma equivocada transformação de gastos financeiros em gastos primários. Gastos primários são aqueles que não têm contrapartida. Os recursos transferidos ao BNDES, por exemplo, são financeiros, porque deverão retornar ao Erário.

Assumir, sem justificativa, que essas despesas se transformarão, na prática, em gastos sem contrapartidas (primários), não é recomendável, sobretudo quando se quer obter um cálculo a sério do resultado recorrente (ou de "déficit real", na terminologia de Mendes). E aí está o problema: não se sabe se é esse o objetivo do autor. Tudo, como ele mesmo vai explicando nas "concessões às críticas", é ad hoc.

O efeito econômico e o efeito sobre a dívida estão dados, independentemente da contabilidade do primário. Essa observação do autor revela que, para ele, o importante é apenas o resultado primário, como se as receitas e despesas financeiras não afetassem a dinâmica econômica e da dívida pública. Por quê? Também ficamos sem resposta convincente, a não ser a premissa ad hoc de que os recursos não retornarão e, portanto, devem ser trazidos para o primário (R$ 40 bilhões).

5 - TLP, primeiro tema da resposta de Mendes não relacionado ao debate: "Isso me faz lembrar discussão semelhante em que o economista participou no passado, quando alegou que não haveria custo de oportunidade para o Tesouro nos empréstimos do BNDES com recursos do FAT, porque a Constituição obrigava a (sic) transferência de recursos para o BNDES. Assim como não se pode aprovar lei revogando a lei da gravidade, também não se pode proibir a existência de custo de oportunidade por mandamento constitucional. Uma coisa é classificação contábil e legal, outra coisa é o efeito econômico."

Ele ressuscita o debate que tivemos a respeito da chamada TLP, há quase uma década, justamente por meio desse método de contrapor a contabilidade e os preceitos da própria Constituição à economia, como se fossem questões totalmente dissociadas.

O custo de oportunidade é um conceito econômico que se aplica a qualquer análise de alocação de determinada quantia de recursos, públicos ou privados. O que se fez, à época, foi usar essa avaliação — na verdade, o conceito teórico — para argumentar contra a destinação constitucional de parte do FAT ao BNDES.

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A decisão dos constituintes foi, em 1988, pela reserva dessa fatia do FAT para compor um funding permanente ao banco de fomento. A busca por transparência na alocação do dinheiro público, eficiência dos gastos, avaliação de políticas públicas e reformas no Orçamento não se contrapõe ao necessário debate do financiamento do desenvolvimento e das iniciativas que dependam, para isso, do Estado.

Não se pode anular a gravidade por lei, tampouco se pode obrigar a que o debate entre colegas de profissão seja realizado em bases civilizadas. A escolha é de cada um.

6 - Otimismo não fundamentado: "Apesar do discurso otimista e dos adjetivos reservados aos 'pessimistas', os números utilizados por Salto, quando devidamente corrigidos, não mostram realidade distinta da que retratei."

"O colega parece ter predileção por esta postura, que une um discurso otimista com números que não avalizam o otimismo. Assim como a prática de criticar, sem o devido embasamento, análises supostamente 'catastrofistas'."

A reação de Mendes é realmente espantosa. Catastrofista, adjetivo que tanto o irritou — talvez porque a carapuça, uma vez experimentada, lhe tenha servido —, ajuda, sim, a qualificar determinadas análises mais pessimistas.

O vaivém nas contas mostra isso. Revisou o número original em R$ 53,6 bilhões, mas manteve sua conclusão inicial (a do artigo na Folha). Fez as tais "concessões às críticas", mas estipulou premissas "ad hoc", como ele mesmo escreveu, que evitaram uma revisão maior na conta original de seu "déficit real".

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Não há, de minha parte, predileção alguma pela postura de que me acusou, isto é, apresentar números não coincidentes com minhas avaliações qualitativas.

Critico o que merece ser criticado, a meu ver, e do ponto de vista técnico, que é o que nos cabe como economistas. Elogio, quando julgo que devo elogiar. O objetivo é sempre tentar contribuir para o debate.

Agora, o que não faço é defender um número de -2,1% de PIB para um indicador "ad hoc" (já que baseado em muitas premissas "ad hoc"), quando o dado oficial indica -0,4% e o cálculo recorrente indica -0,7%, como mostrei no artigo anterior. Para ele, um déficit recorrente de 0,7% do PIB (ou estrutural, de 1,0% do PIB) equivale à conta de -2,1% ou mesmo à conta corrigida após suas concessões às críticas (de -1,8% do PIB).

Não é o caso, como o leitor atento já pôde constatar, de excesso de otimismo de minha parte. Otimismo que, segundo ele, não estaria fundamentado nos meus próprios números. Trata-se, ao contrário, do pessimismo exótico que iguala 0,7% a 1,8% do PIB. Haja pessimismo.

7 - Novo Arcabouço Fiscal: "Em abril de 2023, tão logo o Governo anunciou as linhas gerais do arcabouço fiscal, escrevi artigo com coautores em que mostrava que a nova regra seria inconsistente, insuficiente para conter o crescimento da dívida, comprimiria as despesas discricionárias e induziria o governo a buscar forte aumento de receita. Cenário que se confirmou e hoje está claro para todos."

"Também naquela época, o colega fez circular comentário de que nossas projeções eram excessivamente pessimistas. Reunido com os coautores, publicamos no Brazil Journal o artigo 'Arcabouço fiscal: não se trata de pessimismo', mostrando que os cenários de Salto tinham números piores que os nossos, a despeito de seu discurso otimista."

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O artigo mencionado despertou meu interesse e de meu coautor, à época, pois tínhamos, justamente, elaborado nossos próprios cenários e procuramos compará-los aos de Mendes e coautores, dada sua relevância no debate econômico e fiscal.

Para ter claro, a importância do artigo deles para o debate nos levou a fazer esse exercício e a publicar texto sobre o tema. Trocamos mensagens com Marcos Lisboa, à época, que, como de costume, foi muito gentil e construtivo.

Houve uma réplica e nós publicamos um novo artigo para responder às críticas que foram elaboradas por eles. A grande diferença entre os dois cenários está nas premissas. Uma diferença, por exemplo, estava na correção do salário-mínimo. Outra, no prazo para pagamento dos precatórios.

Noves fora o fato de não haver justificativa para Mendes desengavetar esse episódio no meio do artigo sobre o cálculo do déficit de 2024, para mim, a troca de artigos no Brazil Journal foi positiva e, ao contrário do que ele afirma, mostrou que premissas distintas levam a conclusões completamente diferentes sobre a sustentabilidade do Novo Arcabouço Fiscal (Lei Complementar nº 200/2023).

Cabe complementar: a diferença da nova regra e da antiga (teto de gastos), idealizada e elaborada por Marcos Mendes, é que a atual tem um plano b, prevê a possibilidade de rompimento do limite de gastos e fixa, ainda, sanções para essa situação.

O que devemos discutir, e muito, é como viabilizar o ajuste fiscal necessário à estabilização da dívida/PIB. A melhor regra do mundo não resolverá esse problema estrutural se não houver compromisso político. O diagnóstico é claro e, nisso, há grande convergência, sem dúvida, entre especialistas de diferentes matizes.

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Outros pontos importantes

Em geral, é preciso qualificar o debate sobre o que caracterizaria uma receita não recorrente. As Concessões e Permissões, por exemplo, ficaram em 0,1% do PIB, em 2024, segundo dados de dezembro veiculados no Resultado do Tesouro Nacional (RTN), principal informativo para dados fiscais federais.

Esse número assemelha-se aos verificados no biênio da pandemia, 2020 a 2021, e em 2023. Nos outros, tais receitas foram sempre maiores: 2016, 0,3%; 2017, 0,5%; 2018, 0,3%; 2019, 1,3%; e 2022, 0,5%. Não há, portanto, evidência de que o governo estaria tapando buracos com essa rubrica.
E quanto aos dividendos pagos pelas estatais? O número de 0,6% do PIB foi similar ao de 2023 e ao de 2021, de 0,5% do PIB, e inferior ao observado em 2022 (0,9%).

Nessa questão dos dividendos, o autor alimenta uma preocupação - diga-se, justificada, pelo histórico - com o BNDES e a Petrobras. Mas a Petrobras apresentou valores (de pagamentos de dividendos à União) semelhantes aos observados em 2021 e 2023, e inferiores aos de 2022 (0,3% contra 0,6% do PIB). O BNDES, por sua vez: 0,2% em 2021, 0,2% em 2022, 0,1% em 2023 e 0,2% em 2024.

Não é prudente sair descontando montantes dessas rubricas, portanto, como se fossem atípicos por terem sido elevados. A análise do resultado recorrente desprovida do cotejamento com o histórico recente não parece construtiva.

Considerações finais

Finalmente, em nenhuma frase do artigo publicado para contrapor a conta de Marcos Mendes, para ter claro, fugimos à discussão sobre os números propostos para elaborar críticas pessoais ou resgatar episódios alheios a ela. É bom ser pessimista no diagnóstico e otimista na ação. Já o pessimismo exótico para concluir que estaríamos vivendo o apocalipse financeiro do Estado é só isso mesmo: exótico.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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